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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Ter que ou não ter que, eis a questão


No último feriadão, fui ao Rio de Janeiro passear e assisti a duas peças de teatro: A alma imoral, baseada no livro de Nilton Bonder, e O filho eterno, baseado no livro de Cristóvão Tezza. As duas muito boas, instigantes.

Voltei a Belo Horizonte assombrado por este pensamento: tenho que ler A alma imoral, tenho que ler O filho eterno, tenho que ler A alma imoral, tenho que ler O filho eterno. Abria a estante da sala e ali estavam tantos livros cobrando minha atenção: Os Miseráveis, Ressurreição, Anna Kariênina, Os Irmãos Karamázov, Moby Dick, Orgulho e Preconceito, Admirável Mundo Novo, Sigmund Freud (Volume 16), 3096 dias, Feliz por nada, Religião para ateus,

Na gaveta, Uma breve história do mundo com a leitura interrompida. 

Entro na livraria e encontro outros livros que tenho que ler: As aventuras de Tom Sawyer, As aventuras de Huckleberry Finn, O idiota, O conde de Monte Cristo,

No trabalho dois cursos a distância, processos, reuniões. Em casa, filhos com impetigo, urticária, urgências, carências, esposa atarantada; por certo espera-se alguma atitude do pai e marido. E ainda por cima, o Botafogo perdeu de novo (nem a ilusão me dá um refresco). Tomo um remédio e vou dormir.

O que tenho que fazer é deixar de tanto tenho que. Me esvaziar de tanta cobrança interna. Não tenho que ler livro nenhum. Não tenho que nada (ou quase nada). Tenho que está errado, dizem alguns gramáticos, e acertam sem querer bem no alvo.

A pergunta (difícil) é: O que eu quero?

Por ora, quero escrever algumas linhas sobre A alma imoral, de Nilton Bonder, e sobre O filho eterno, de Cristóvão Tezza, mesmo sem ter lido os livros, mesmo que nunca os leia.

A alma imoral

Fui assistir à peça A alma imoral, adaptação da atriz Clarice Niskier para o livro de Nilton Bonder. Se tiverem oportunidade, não deixem de assistir à peça, que já está há seis anos em cartaz. Se houvesse um livro com o roteiro da peça, eu recomendaria. Mas o que há para ler é o livro A alma imoral.

Gosto de ler o que o rabino Nilton Bonder escreve. Já li seus livros Tirando os sapatos, A arte de se salvar e O sagrado, além de alguns textos pequenos disponíveis na Internet. Mas nunca tinha conseguido ler A alma imoral. Alguns parágrafos são muito difíceis, e o livro começa com conceitos da psicologia evolucionista com os quais não estou familiarizado. Ainda assim, me parece um livro importante, principalmente depois que a peça me transportou diretamente para o centro da questão do livro.

A alma imoral nos apresenta a vida como tensão entre a obediência às regras estabelecidas e a transgressão a essas regras. O homem leva essa tensão para a consciência, e precisa honrar tanto as leis do passado, representadas pelo corpo moral, quanto as aspirações do futuro, representadas pela alma imoral.

Ao recontar histórias da Bíblia e anedotas da tradição judaica, Nilton Bonder mostra como em determinadas circunstâncias o errado (de acordo com a lei) é o certo (de acordo com o espírito da lei), e o certo (de acordo com a lei) é o errado (do ponto de vista do espírito). E é nesse jogo e nessa tensão que a traição de hoje instaura a tradição de amanhã. 

A possibilidade de mutação, portanto, deve estar implícita em qualquer lei, pois uma lei cujo único sentido seja sua eterna perpetuação é uma lei sem sentido, um corpo sem alma. E um mundo estreito.

O filho eterno

Em O filho eterno, o escritor Cristóvão Tezza ousou narrar com a sinceridade da literatura sua vida do ponto de vista do relacionamento de 25 anos com Felipe, o filho mongoloide, ou melhor, com mongolismo (em 1980, ano de nascimento do filho, ninguém sabia o que era síndrome de Down).


Mas não é uma autobiografia. Para evitar qualquer confusão, a narrativa é em terceira pessoa. Ele, o pai, o escritor, o marido. A terceira pessoa é usada não apenas para narrar os acontecimentos, mas principalmente para revelar os pensamentos mais secretos do pai, sem deformar sua identidade. 

A opção pela ficção é a opção por um relato verdadeiro, que seria impossível em uma autobiografia. Todos nós temos o direito (e até o dever) à ficção do eu. Afinal, o eu, na medida do possível, não é egoísta, não odeia, não perde a paciência, não bate, não quer fugir da esposa e do filho, não deseja a morte de ninguém.

Viktor E. Frankl e o tempo


Viktor Emil Frankl desenvolveu uma abordagem muito original do tempo, que pode nos ajudar a lidar com a vida, que é tempo. 
A eternidade, anseio do homem, normalmente é associada a uma vida que não morre, ou a algo fora do tempo e, portanto, fora de nós. Frankl inverteu esse raciocínio e viu que a única coisa eterna é o passado. O que foi feito, o que aconteceu, foi feito e aconteceu para sempre. Foi salvo. E podemos encarar nossa vida no presente como escolha do que queremos eternizar, salvar no passado, entre as tantas possibilidades que o futuro nos oferece:

Se cada coisa fica para sempre armazenada no passado, é importante decidir no presente o que queremos eternizar, levando-a a fazer parte do passado. Este é o segredo da criatividade: nós removemos alguma coisa do nada do futuro “transformando-a em passado”. A responsabilidade humana, portanto, está em saber escolher as possibilidades do futuro, transformando as possibilidades em realidades, pondo-as a salvo no abrigo do passado.

Esta, portanto, é a razão pela qual tudo é tão transitório: tudo é passageiro porque tudo foge da nulidade do futuro para a segurança do passado! É como se cada coisa estivesse dominada por aquilo que os físicos antigos chamavam de horror vacui, o medo do vazio: é por isso que tudo vai correndo do futuro para o passado, do vazio do futuro para a existência do passado. É a razão pela qual há uma congestão na “passagem estreita e na abertura do presente”, porque ali todas as coisas são detidas e se atropelam, esperando ser libertadas – como um evento que se faz passado, ou como uma de nossas criações e ações, admitidas por nós na eternidade.

O presente é a fronteira entre a não-realidade do futuro e a realidade eterna do passado. Justamente por isso é a “linha demarcatória da eternidade”; em outras palavras, a eternidade é finita: estende-se só até o presente, o momento presente em que escolhemos o que desejamos admitir na eternidade. A fronteira da eternidade é onde a cada momento de nossas vidas é tomada a decisão sobre o que queremos eternizar ou não.

Compreendemos agora que engano acontece quando entendemos a frase “ganhar tempo” como expressão para o fato de deixarmos algo para o futuro. Ao contrário, ganhamos tempo quando o libertamos e o depositamos no passado.

Algo sobre a morte

E, retomando a analogia da ampulheta, o que acontece quando toda a areia escorreu pela passagem e a parte superior está vazia, quando o tempo passou para nós, e nossa vida está completa e terminada? Em uma palavra, o que acontece na morte?

Na morte tudo o que se passou congela-se no passado. Nada mais poderá ser modificado. A pessoa não tem mais nada á sua disposição: nem mente, nem corpo, ela perdeu seu ego psicológico. O que lhe resta é o self, o eu espiritual.

Muita gente acredita que a pessoa que está morrendo vê sua vida toda em uma fração de segundo, como um filme em alta velocidade. Assumindo essa imagem, podemos dizer que o próprio homem é o filme. Então ele “é” sua vida, ele se transformou na história de sua vida – tenha sido ela boa ou má. Ele se fez seu próprio céu ou seu próprio inferno.

Isso leva ao paradoxo que o passado do homem é seu verdadeiro futuro. O homem enquanto vive tem um futuro e um passado; o moribundo não tem futuro no sentido usual, mas apenas um passado; o morto, porém, “é” seu passado. Que ele seja “somente” sua vida passada não tem importância; afinal, o passado é o modo mais seguro de ser. O passado é exatamente aquilo que não pode mais ser eliminado.

O passado é “passado perfeito” no sentido literal do termo. A vida então está completa, realizada. Mesmo se no decurso da vida apenas fatos consumados singulares passem pela cânula da ampulheta, agora, depois da morte, a vida passou em sua totalidade, transformou-se em um fato consumado perfeito.

Isso leva a um segundo paradoxo – e duplo, por sinal. Se é verdade que o homem, como vimos, faz de alguma coisa uma realidade ao colocá-la no passado (e assim ironicamente salvando-a de sua transitoriedade) – se é assim, é também o homem que se faz realidade, que “cria” a si mesmo. Em segundo lugar, ele não é bem uma realidade a partir de seu nascimento, mas a partir de sua morte; ele está “criando” a si mesmo no momento da morte. Seu eu não é algo que “é”, mas algo que vai acontecendo, e por isso chega a ser completamente só quando a vida é completada pela morte.

Na realidade, na vida cotidiana o homem tende a entender mal o sentido da morte. Quando o despertador toca de manhã e nos tira de nossos sonhos, sentimos tal fato como se algo de terrível estivesse acontecendo no mundo de nossos sonhos. E ainda presos em nossos sonhos, às vezes, não percebemos (ou pelo menos não de imediato) que o despertador nos chama para a existência real, nossa existência no mundo real. Mas nós mortais não agimos de maneira semelhante, quando nos aproximamos da morte? Não nos esquecemos igualmente que a morte nos desperta para nossa verdadeira realidade?

Mesmo se for uma mão amorosa e acariciante que nos desperta, por mais que seja gentil, nós não percebemos logo sua gentileza. Mesmo então sentimos apenas uma intromissão no universo de nossos sonhos, uma tentativa de lhes dar um fim. Assim, freqüentemente a morte aparece como algo assustador, e dificilmente suspeitamos quanto de bem ela significa...
(Viktor E. Frankl, Psicoterapia e Humanismo, pg. 93)