O que me mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo, misericórdia.
(do conto Pierrô da caverna)
Nós temos fome e sede de maldade. Por isso os livros do Rubem Fonseca não são lidos; são devorados.
O foco narrativo é quase sempre em primeira pessoa. O narrador é humano. Não no sentido idealista de bom e racional (bom e racional é o modo como tentamos nos apresentar). Humano em um sentido em que secretamente nos reconhecemos. Uma mistura de bondade e maldade; desejo, ironia, revolta, impulso; muito sentimento e pouca razão. A ficção de Rubem Fonseca também nos transporta para o lugar do violento, do vingativo, do cruel, do tarado, do egoísta. E podemos dar vazão a nossas paixões mais violentas.
Ler Rubem Fonseca é um choque para quem acredita que o mal está do lado de fora: nos filmes, nas novelas, nas ruas, nos outros. A maldade, já se disse, está dentro do coração do homem.
Nada há no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o torna impuro.
Com efeito, é de dentro, do coração dos homens que saem as intenções malignas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, malícia, devassidão, inveja, difamação, arrogância, insensatez.
(Marcos 7:15 e 21)
Feliz ano novo, lançado em 1975, teve sua publicação e circulação proibidas a partir do ano seguinte. A proibição foi mantida até 1985, mas o livro só foi reeditado em 1989. O conto que dá título ao livro narra – do ponto de vista de um dos bandidos – um assalto violento na noite do réveillon. Em Passeio noturno (Parte 1 e Parte 2), um executivo, chefe de família, sai toda noite para atropelar pessoas por pura diversão. O censor entendeu que o livro atentava contra a moral e os bons costumes, e incitava à violência. Para ele, a maldade vem de fora e contamina o homem; e Feliz ano novo, desse ponto de vista, é muito perigoso. Com nobres propósitos, portanto, proibiu sua publicação.
Mas os leitores de Feliz ano novo e dos livros subsequentes de Rubem Fonseca não são piores que a média dos homens. Ao se conhecerem melhor, têm a chance de fazer escolhas mais conscientes. Negar o mal que nos habita não o fará desaparecer, nem nos transformará em pessoas boas. Como percebeu o poeta Antônio Porchia em algumas de suas vozes:
O bem é somente um belo desejo do mal.
O mal não é feito por todos, mas acusa a todos.
Não usar defeitos, não significa não os ter.
Hoje encontrei em mim um novo defeito. Hoje a humanidade tem um novo defeito.
64 contos de Rubem Fonseca, editado pela Companhia das Letras em 2004, reúne o melhor da produção do escritor, com obras selecionadas de todos os seus livros de contos, desde Os prisioneiros, de 1963, até Pequenas criaturas, de 2002.