A Arte de se Salvar
Sobre
Desespero e Morte
(trechos
selecionados)
Nilton Bonder
Ocultamento (pg.
17 a 22)
É
interessante notar que “desistir” é um ato de entrega, da mesma
forma que a fé ou a esperança são também atos de entrega. Quando
os indivíduos perdem o fôlego da juventude ou dos interesses
temporais, experimentam um afastamento da dimensão do controle,
estrutura artificial de “fé” convencionada para gerar um
sentimento de ordem. Esta crise surge pelo fato de que, quando a
realidade biológica e ecológica esgarça de maneira irreversível a
relação entre corpo e mente, apenas na dimensão da entrega é que
pode existir uma continuidade. Esta entrega pode então ser o
desespero ou a fé. Por desespero não devemos conceber
necessariamente o estereótipo de alguém em pânico, mas a situação
em que um indivíduo é tomado por um cinismo rascante, pouco se
importando se com sua perda arrasta consigo outras perdas. Tampouco
devemos tomar como exemplo de fé a imagem do mestre espiritualizado,
ou a imagem da carola entorpecida, mas uma atitude de considerável
serenidade diante do envelhecimento, das perdas e da valência de
outras visões de mundo que não a nossa.
Preservação
– distinguindo as dimensões de Verdade e de Amor
(pg
28 a 34)
...a
Verdade não depõe contra o Amor; em realidade, ela é o pano de
fundo onde este se faz possível. A Verdade depõe, outrossim, contra
o mundo do controle – a compreensível, mas perigosa dimensão de
esperar que a realidade toda possa ser reduzida apenas à realidade
do Amor.
(...)
Para que
um indivíduo se entregue à esperança e não ao desespero, é
imprescindível algum nível de integração da realidade da Verdade
a do Amor. Como céus e terra que se beijam suavemente no horizonte,
a Verdade é irredutível ao Amor, mas a partir de um se pode chegar
ao outro. O simples conhecimento da realidade da Verdade não é em
si um antídoto para o desespero. Muitas vezes esta dimensão é
confundida como sendo a própria dimensão da desordem, do caos.
Somente através da integração e incorporação da dimensão da
Verdade a nossas vidas como a expressão de uma ordem de natureza
distinta, é que se consegue conter o impulso ao desespero. A fé,
portanto, não é a capacidade de esperar por aquilo que gostaríamos
que acontecesse, mas acima de tudo é a capacidade de integração
daquilo que está além de nosso querer. É a quase impossível
tarefa de encontrar alegria na concretização daquilo que deve ser.
É um nível de entrega que não se alcança através da reflexão,
mas através da constante arte de saber honrar e celebrar as perdas e
os ganhos da vida.
A Concordata (Nunca a Falência) da
Consciência (pg. 35 a 40)
Para
podermos preservar a fé, devemos ser capazes de declarar nossas
consciências momentânea e esporadicamente como em processo de
insolvência, e pedir concordata. Esta medida, que reconhece a
incapacidade da consciência de nos representar plenamente na arena
da existência, tem também como objetivo não permitir sua falência
final. Dependemos desta consciência em infinitas situações de
sobrevivência; sua falência é nossa própria extinção.
Para
poder honrar a consciência e a experiência existencial, temos que
conhecer a arte de pedir “concordata” para nosso empreendimento
na dimensão da consciência. Esta concordata tem como parte de seu
objetivo salvaguardar a própria consciência de uma possível
falência, que representaria a alienação total. Esta concordata é
comumente chamada de entrega.
Popularmente,
dizemos coisas como: “está nas mãos de D’us”, “está
entregue à sorte”, para expressar um estado em que abrimos mão da
perspectiva de controle, sem que ao mesmo tempo faça-se espaço para
o caos e para a desesperança. É um estado de fé, um estado de
graça onde após termos feito sem sucesso tudo que poderíamos fazer
numa dada situação, ainda preservamos uma noção de ordem no
reconhecimento de que aquilo que tiver de ser, será. Aquelas frases
traduzem instantes em que temos coragem para assumir a insolvência
de nossa consciência, para preservar a ordem no mundo à nossa
volta. Esta ordem, obtida por um “gerador” no apagar das luzes da
dimensão do controle, é de uma natureza não-objetiva. Ela é
resultante da ordem circundante, que cria em torno da experiência
existencial um clarão, mesmo quando se instala a escuridão.
(...)
Tal
clarão que ilumina a desordem momentânea, fazendo com que a mesma
pareça adquirir um sentido de ordem, é uma percepção da vida que
raramente conseguimos captar sob a forma de consciência. (...)
...a
consciência é um instrumento rastreador de ordem e não da
percepção das possíveis desordens que não se concretizam como
tal. Esta dimensão é resgatada exatamente nesta insolvência da
consciência, na entrega. Entregar-se é possuir alguma noção da
magnitude da ordem existente nas infinitas possibilidades de
aleatoriedade e caos, que não se concretizam e que não são
registradas sistematicamente.
A Entrega Antes da Entrega (pg.
41 a 43)
“Sejai fortes, firmai
vossos corações, vós que esperais o Eterno...” (Salmos 31:25).
Aqueles
que não estão “no ponto”, que não conseguem entregar-se, por
qualquer que seja a razão, devem poder, pelo menos, esperar por
D’us. Esta “expressão técnica”, esperar por D’us, explicita
uma espécie de entrega de fé, que não é a própria entrega como
uma postura ativa. Pessoas sob o impacto de uma realidade ou notícia
muito dolorosa podem optar, em sua perplexidade e incapacidade de
“digerir” os acontecimentos, por “esperar por D’us”.
O
próprio versículo dos Salmos utiliza-se da imagem de uma
tempestade, onde aqueles que esperam devem agarrar-se fortemente e
firmar seus corações, para que não sejam levados pela intensidade
avassaladora dos acontecimentos. Quando não há forma humana de
assimilar uma realidade da dimensão da Verdade, os que conseguem
esperar realizam o esforço mínimo necessário para não serem
levados ao desespero. Conseguem, portanto, dimensionar sua
perplexidade como transitória e momentânea e não elevá-la à
perigosa categoria do conclusivo, do final. Esta é a razão pela
qual a palavra desespero traz em sua raiz o significado de antítese
de espera.
A
entrega antes da entrega, ou a espera, não é idêntica a uma
postura Aié (Onde está a glória?). Aié é uma busca e aceitação
ativa daquilo que não será revelado, apenas mostrado sob sua forma
velada. A entrega antes da entrega é traduzida na escala coletiva
pela idéia messiânica através da qual, seja qual for a realidade
que se apresente diante de uma geração, sua postura será de
espera. A salvação, para a decepção de muitos, não será o mundo
da ordem Malé (aqui está a glória), nem da ordem do controle e da
consciência, nem um mundo composto unicamente pela realidade do
Amor. Será, sim, o mundo onde existem as condições necessárias
para que haja entrega. Uma realidade onde a entrega ativa será
universalmente parte do comportamento humano – onde tudo que é
oculto passará a ser velado.
Estéticas Fora do Caos (pg.
44 a 47)
A
estética comum, na sua aversão à ordem que não seja explícita,
torna-se campo fértil para o desenvolvimento do conceito de caos. A
capacidade de perceber estética no que é velado é a única saída
para evitarmos que o mundo se torne feio à medida que vivemos e
amadurecemos para a vida.
A Estética das Coisas no Seu Tempo
Certo (pg. 48 a 51)
O que
fica demonstrado é nosso despreparo em relação à forma de encarar
a vida e o quão “mimados” somos na dimensão da ordem. Por
ordem, sob a perspectiva do mimo, entenda-se o desejo constante de
que as coisas sejam do jeito que gostaríamos que fossem. Já
mencionamos antes que o que desejamos interage com a realidade
daquilo que deve ser.
Quando o
que queremos é que as coisas sejam da ordem de “como devem ser”,
estamos falando da aplicação de nossa experiência com o mundo
velado. Não podemos compreender plena e explicitamente – Malé,
mas aceitamos. Neste instante, as coisas no seu tempo certo ganham
uma nova dimensão – além da dimensão do que gostaríamos que
acontecesse.
(...)
Resgatar
o significado, a cada momento da vida, de quão apropriadas são as
coisas no momento em que se realizam é exercício indispensável
para livrar-nos do cinismo. Saber reconhecer esta estética é poder
ver além desse mundo explícito. É descobrir no contentamento o
supremo senso estético da harmonia, e na busca obsessiva da
felicidade uma estética que peca pelo exagero. Como é feio o
afetado, o que quer preservar o que é perecível, o excesso! A vida
nada tem a ver com isso – uma coisa a seu tempo estará sempre
associada a um sentimento de entrega.
A Estética das Coisas no Seu Lugar
Certo (pg. 53 a 55)
Na
famosa noite decisiva em que o norte dos Estados Unidos resolveu
entrar em guerra com o sul, conta-se que um general ergueu um brinde
dizendo: “Possa D’us estar conosco!”, ao que foi corrigido por
Abraham Lincoln: “Possamos nós estar com D’us”. Esta pequena
inversão expressa a possibilidade do “sucesso” como uma
manifestação fundamentada não na realidade do Amor, mas nesta que
estamos chamando de Verdade.
Se você
acha que está bem porque D’us o ama, ou porque está com você
naquele instante, terá que admitir em outros momentos, quando você
não estiver “por cima”, que D’us não gosta mais de você. Tal
percepção do mundo, na mesma medida em que é atrativa, é também
destrutiva e fomentadora do desespero.
Reb
Nachman ilustrava esta questão através de uma passagem bíblica
(Gen., XXI), em que Hagar, esposa de Abraão, é expulsa de casa.
Estando Hagar com seu filho Ismael sem água em pleno deserto, às
raias do desespero, procurou afastar-se do menino para não ter que
presenciar sua morte. Neste instante D’us ouviu o choro do menino e
disse (v. 17): “O que tens Hagar? Não temas; pois escutou D’us a
voz do menino DE ONDE ELE ESTÁ!”
Quando
uma pessoa percebe que “de onde quer que esteja” há uma estética
que lhe permite a percepção de estar “com D’us” ou “honrando
sua Verdade”, nada mais pode impedi-la de servir a D’us com
sinceridade, nem de se imunizar contra o cinismo. Assim sendo, não
deveríamos buscar encontrar D’us, a ordem, aquilo que é próprio
ou o estético apenas quando as coisas parecem ir ao encontro do que
esperamos ou desejamos. Desde o próprio lugar onde nos encontramos,
seja na escuridão ou nas profundezas, de lá – e não de uma
posição de suborno “se as coisas vierem a melhorar...” –
devemos fazer contato com a ordem; com o eterno. “Desde lá
procurarás o Eterno teu D’us”, afirma o texto bíblico (Dt.
4:29) e Reb Nachman se pergunta retoricamente: “Desde lá, onde?
Lá. Desde o lugar onde você se encontra”. D’us não se encontra
na prova vencida, na cura ou no sucesso alcançado, procure-O/A desde
o lugar onde você está.
(...)
Assim
sendo, a estética de “um lugar certo” não é a experiência de
quando tudo vai bem ou sob controle, mas a possibilidade de vivermos
integralmente o que se nos apresenta num dado instante.
“E Viu que Era Bom.” “Bom o
Que? A Morte.” (pg. 59 a
63)
Ora
tendemos ao ceticismo, ora a esta crença de “que la hay, hay”. O
primeiro é facilmente experimentado quando assumimos um tom irônico
e dissociado da vida. A segunda surge como uma atitude de
cumplicidade e intimidade com o TODO que, na verdade, não sabemos se
nos foi conferida ou não. Um nos faz ter a certeza, com a solidez da
racionalidade de “é claro que não há nada... acabou, acabou”.
A outra nos permite continuar visualizando os nossos mortos e lidando
com a individualidade sem a menor descontinuidade em relação ao que
foram quando vivos. Ambas não são a realidade, apesar de muito
concretas e atraentes. A primeira, por sua frieza, reforça a
coerência da consciência. A segunda, pela obviedade da manipulação
da realidade pela vontade humana, também reforça o poder da
consciência.
Nesta
confusão oscilante, a consciência encontra um modus vivendi
para lidar com um espaço ao qual ela é externa. Salvaguarda assim a
si própria, mas não a nós. Isto porque somos mais do que apenas
nossa consciência e preservar-nos não implica em garantir a
qualquer custo apenas a manutenção de sua coerência ou poder.
(...)
“E
D’us viu tudo o que tinha feito, e viu que era muito bom.” (Gn
1,31)
Rabi
Meir disse: “e viu que era muito bom – muito bom o quê? Isto se
refere ao Anjo da Morte.”
O
atrevimento penetrante desta afirmação é magnífico. É no mínimo
surpreendente imaginar o Criador, justamente Aquele/a que faz e
diferencia tudo, que cria, dando identidade e especificidade a tudo,
olhando sua obra como um artista que, ao apreciá-la, registra nada
menos que o Anjo da Morte como o expoente máximo de seu trabalho.
A
criação havia sido confeccionada sobre um fundo que D’us
identifica como extremamente estético (e viu que era muito bom).
Talvez seja melhor que em lugar de fundo, que traz uma conotação
tão forte de algo que é separado da própria obra, nos valhamos de
um modelo mais refinado. O processo gráfico conhecido como retícula,
por exemplo, deve ilustrar melhor esta imagem. Neste processo, a cor
é formada pela variação do número de pontos desta mesma cor
contidos no papel. Por exemplo, a aplicação sobre um papel branco
de milhares de pontinhos vermelhos resulta no efeito cromático do
rosa. Se o número de pontos vermelhos fosse aumentado, perceberíamos
o vermelho mais escuro. Assim sendo, a própria vida, que
grosseiramente percebemos como “rosa”, nada mais é do que o
fenômeno intercalado do “branco e do vermelho”, ou seja, de vida
e morte, de nascimento e reciclagem.
(...)
A
estética que D’us percebe na morte (“muito bom”) nos é uma
realidade velada. Nela encontramos a salvação.
A Dinâmica das Pausas (pg.
64 a 66)
...
temos medo das pausas. Todos nós já tentamos dar conta das pausas
buscando controlá-las, e a sensação resultante não é agradável.
Uma pausa é uma corrente que já tem rumo. Ao contrário do que a
palavra possa nos sugerir, uma pausa não é algo neutro. É um
trecho, uma passagem onde não temos porque controlar o leme – o
rumo já é definido. Entregar-se é a forma de navegar pelas pausas,
e quando não compreendemos esta lei do fluxo, ficamos bastante
angustiados. Reagir a uma pausa é, portanto, remar contra a maré, é
nadar contra a corrente de nossas próprias vidas.
As
pausas ficam assim associadas à perda de controle e às experiências
violentas por ela ocasionadas. Uma queda, uma força ou uma
velocidade que nos surpreende, um objeto que se nos escapa da mão, e
confirmamos nosso temor. Estas quedas, estes deslocamentos
silenciosos nossos ou de alguma coisa à nossa volta que não
controlamos são pausas. A pausa, como disse, não é uma
inatividade, mas a hibernação dos meios de controle da realidade à
nossa volta.
Quem se
permite experimentar uma pausa, quem se permite descobrir que, para
além da violência do descontrole, atinge-se trechos do percurso
onde a vida retoma controle (onde não há mais rumo, mas calmaria)
acaba por encontrar uma nova forma de se relacionar com a própria
vida. Quando a pausa for intensa, ou quando se tratar da grande
pausa, este indivíduo possuirá a experiência necessária para
saboreá-la como parte integrante, e não intrusa da vida.
1/6 de Morte (pg.
67 e 68)
No
talmude encontramos uma definição curiosa e uma medida curiosa para
o sono. Segundo ele, o sono é um sexto de morte.
1/8 de Morte (pg.
69 e 70)
Segundo
uma outra tradição, nada nesta vida se conduz com menos do que um
oitavo de morte. (...)
...qualquer
índice abaixo de 12,5 por cento de morte representa penetrar na
realidade do ocultamento. Nesta faixa, a dimensão do Amor é
distorcida, e encontramos os primeiros sinais de desespero, que se
aprofundam à medida que caem os percentuais da presença de morte.
Índices abaixo de 12,5 por cento indicam controle excessivo, apego e
materialismo. São espaços onde quase não há pausa, onde os rumos
correntes predeterminados de vida têm baixíssima velocidade. Nestas
profundezas, impera a ordem do que “gostaríamos que acontecesse”
com muito maior frequência do que a própria realidade é capaz de
proporcionar. É uma área de constante perigo, assolada por
terríveis tempestades de cinismo e medo.
Trabalhar
a vida em índices constantemente abaixo de um oitavo de morte
significa se colocar numa situação difícil e perigosa perante a
própria morte, porque a descompressão necessária para se passar da
experiência destes baixos índices de morte às realidades onde a
intensidade de morte e de perda é muito maior é tão violenta, que
pode causar uma “embolia” d’alma naqueles que exorcizam o
mínimo de morte existente em tudo.
Quando
este índice cai a zero, quando não há mais elemento de morte na
vida, entramos na realidade do suicídio. Apenas este controle
radical expurga qualquer possibilidade de rumo próprio da vida que
nos obrigue a nos entregar a ele. A vida plena, destituída de morte,
é o suicídio – ato maior do desespero.
6/7 de Vida (pg.
71 e 72)
Através
desta curiosa quantificação de qualidades tão fundamentais como
vida e morte, chegamos à conclusão de que a vida acordada funciona
numa faixa saudável quando nas proximidades de seis sétimos da vida
como um todo. A morte pulsando com um sétimo de sua totalidade dá o
tom de uma vida afastada do desespero (abaixo de um oitavo de morte)
e dos sentimentos mórbidos (acima de um sexto de morte para um
momento desperto).
Sabendo Perder para o Universo (pg.
76 a 81)
Saber
perder para o universo é acima de tudo conhecer e respeitar as
regras que fundamentam a própria vida. “D’us dá e D’us tira;
abençoado o nome de D’us para todo o sempre”, diz o texto
bíblico, apontando para uma relação entre divindade e criação
que para muitos deixa apenas subsídios para resignação. No
entanto, a resignação não é a forma mais apropriada de demonstrar
que sabemos perder para o universo. Saber perder para o universo é
um conceito diretamente associado com a capacidade de saber ganhar do
universo. Trata, portanto, da determinação da medida exata em que
devemos alimentar expectativas em relação à vida, em combinação
com a medida exata com que devemos nos permitir um comportamento
marcado pelo desapego.
(...)
Este
comportamento representa entrar no jogo da vida para ganhar, amando a
perda com a mesma intensidade que se ama a conquista, sabendo que uma
é o avesso da outra e que é impossível ser grato por uma sem
também o ser pela outra.
(...)
Devemos
buscar como se tivéssemos perdido algo, como se tivéssemos o
direito de reencontrá-lo; ao mesmo tempo devemos manter uma
mentalidade de busca ao tesouro que, no caso de sucesso da busca, nos
faz agradecer pelo tesouro, como se não tivéssemos direito ao
mesmo. Este é o exercício diário que deveríamos realizar para
aprender a perder para o universo. Aprender a perder para o universo
é comportar-se corretamente quando no esforço por ganhar e quando
se ganha do universo. A maneira pela qual recebemos algo do universo
é fundamental, pois favorece ou não a capacidade de perder para o
universo. Assim sendo, não deveríamos nunca deixar de reconhecer no
conceito teórico de “D’us dá e D’us tira” a dimensão
violenta que existe também em se experimentar o “receber” (no
mínimo tão violenta quanto a percepção que temos daquilo que nos
é tirado).
(...)
Saber
perder para o universo é abrir mão de forma artística do controle
nestas duas variáveis – busca e resultados. Na busca, abrir mão
do controle é não se deixar levar pela lógica que reprime (e por
fim suprime) a crença de que há algo para ser encontrado. No
resultado, abrir mão do controle é permitir a si mesmo a surpresa
de ter encontrado algo de cuja existência se tinha certeza na busca.
Quando, no entanto, o resultado é a perda e nada encontramos, não
se registra nenhum efeito de mágoa, uma vez que esta é uma reação
de quem espera, e não de quem se surpreende no ato de encontrar.
Saber
perder (e saber ganhar) é um comportamento “contraditório”,
onde esforço e expectativas não compartilham de uma mesma
realidade. A conexão entre uma busca com fé e a aceitação de um
resultado negativo (ou a gratidão por um resultado positivo) é
obtida por uma atitude de vida muito especial.
Ruim, Não... Amargo (pg.
82 a 85)
Disse o
rabino de Kobrin:
“Quando
sofremos alguma atribulação, não devemos dizer: “Isto é ruim”,
pois D’us não dispensa sobre nós coisas ruins. Devemos dizer, no
entanto: “estou passando por uma experiência amarga”, tomando o
revés como um remédio amargo que um médico prescreve a fim de
curar o paciente.”
(...)
Abandonamos
o mundo do ruim, para passar a tratá-lo pelos critérios de nosso
paladar. Ainda atestamos o amargor do ruim, porém um gosto deixa de
pertencer à esfera de uma realidade absoluta e passa a ser uma
sensação.
(...)
No
entanto, fazer a transição do ruim para o amargo não é algo
simples nem sequer garantido a todos os seres humanos. A persistência
do ruim sob a forma de ruim é exatamente a definição do que
conhecemos como desespero.
(...)
Esta
primeira fase de transformação de nossas relações com o mundo é
fundamental.
(...)
Para que
esta transição seja possível, dependemos também da capacidade de
discernir que o bom não é “bom”, mas doce. D’us ou o Universo
não são responsáveis pelo bom, pois este também é um conceito
nosso. O que percebemos como doce nem sempre é bom à luz de outra
perspectiva, quanto mais em termos absolutos.
(...)
Viver o
prazer com a moderação de sabê-lo doce, e não como bom puro e
destilado, é temperar a vida com sua dimensão morte. É tê-la
diante de nós de forma mais real. Não significa um mundo menos
gostoso, pois nos é dado sentir em sua realidade também o doce. Não
há custo, em termos de intensidade do prazer, na transformação do
conceito de “bom” em conceito de “doce”; há, porém, uma
limitação do caráter insaciável. O bom é da dimensão do
insaciável; o doce, não. A doçura perde sua própria intensidade
na ausência do amargo. Os gourmets concordariam: o amargo e o doce
são inseparáveis. É só ao não saber dosá-los que invadimos o
território do que é ruim.
Amargo, Não... Bom (pg.
86 a 89)
Vamos fazer agora um
passeio até a fronteira. Teremos para isto que abusar um pouco de
nosso senso de realidade, esgarçando-o quase ao ponto da descrença.
Vamos tentar conceber algo que é bastante inquietante –
compreender o amargo como “bom”, sem que com isso descambemos
para uma apologia do sofrimento nem para uma confusão entre o ruim
que se dissimula em bom como uma faceta do caos. (...)
Tentaremos
tangencialmente compreender algo que não nos cabe compreender –
algo que “não é para o nosso bico”. Na verdade, muito do que
estamos analisando parte do pressuposto de que aceitamos a existência
de uma dimensão que “não é para o nosso bico”. Esta é uma
premissa da perspectiva religiosa que a difere radicalmente da visão
científica. A religião se propõe a conviver com uma realidade onde
o que “não é para o nosso bico” pode ser experimentado em sua
forma velada. Por conviver devemos entender uma atitude de aceitação
ativa deste “lado oculto” que se faz ver em seu reflexo, em sua
silhueta. (...) O chão da religião é o mundo simbólico, o mundo
enevoado daquilo que se expressa e se vê em ritual e em debates
apenas quando estes últimos são ritualizados. O ritual é uma
convenção humana para convocar uma interação e uma troca
inteligente com aquilo que não podemos compreender.
(...)
O amargo
não pode ser doce, mas pode ser bom.
(...)
Bom é
uma atribuição que fazemos em relação a alguma coisa que
conhecemos e que podemos perceber como adequada. Digamos que pela
perspectiva religiosa exista uma realidade “que não é para o
nosso bico”. Nesta dimensão, não saberíamos qualificar algo como
bom (ou ruim). (...)
Pois é
na medida exata em que definimos a abrangência daquilo “que não é
para o nosso bico” que podemos reconhecer traços velados de um
amargor que pode, por definição, ser bom. Quanto maior for esse
campo, quanto mais cultivarmos uma relação com os limites de nossa
compreensão, mais espaço terá o amargo para possivelmente ser
percebido como bom.
(...)
A
questão se resume à qualidade de relação que mantemos com o
Mistério. Refiro-me aos mistérios que assombram os mais rotineiros
momentos de nossas vidas: o respirar, o céu infinito, a morte, o
nascimento, o arrepio, o passado, o futuro, um vulto da infância; em
que medida nos relacionamos com o enigma momentâneo e constante de
tudo?
(...)
O amargo
é bom no território da dimensão de um fenômeno que não é para
nosso bico. Quem preserva e cultiva este “recanto” em sua vida
consegue atingir o limite humano que para muitos já está além da
possibilidade da crença. Estas pessoas que não dispõe da crença
são prisioneiras do mundo onde o amargo é ruim. Um mundo de
ansiedade pelo doce, onde a dimensão de Amor se torna sufocante.
Como na lamparina que com muito óleo acaba por apagar, a expectativa
excessiva por bondade, compaixão e benesses acaba por traduzir-se na
mais violenta das maldades. A ânsia pelo doce é o mais amargo de
todos os destinos.
Tachlis – Objetivamente, sem
Rodeios (pg. 90 a 93)
Nestes
momentos de sinceridade, sem nenhuma fachada ou farsa, à medida que
sua opção tender para uma relação de ganho/perda imediata com a
vida, seja em qualquer área, financeira, física, emocional ou mesmo
espiritual, você estará na dimensão “é para meu bico”. Se, no
entanto, tachlis contiver elementos de entrega, evidenciando
uma certa medida de paz que se origina na despreocupação em relação
a possibilidade de ganhos ou de perdas imediatos, estamos registrando
alguma integração de realidades que não nos dizem respeito.
Tachlis
é uma medida invisível que se faz real apenas à medida que se
aproximam nossos compromissos com a realidade da Verdade. Assim
sendo, dois extremos de relação com a vida aparentam resultados
semelhantes. Vive bem neste mundo quem tem uma relação com a vida
do tipo Reb Sussia, mas também quem busca, sem qualquer remorso ou
culpa, obter predatoriamente deste mundo o que puder. Ambos tratam a
vida, pelo menos por um longo período, com uma segurança
semelhante. O tachlis de um, no entanto, é totalmente oposto
ao do outro. Esta diferença se fará conhecer à medida que um
desenvolve em curso direto rumo ao desespero, enquanto o outro vê
sua paz confirmada. Um vai se defrontar com o que está fora de seu
alcance como uma realidade que o desabona, frustra e destrói; o
outro (como a criança que aceita não compreender algo com base na
confiança em seus pais, que melhor conhecem a realidade e a
protegem) se sentirá amparado, no âmbito do que não está ao seu
alcance, por um algo-pai-mãe maior.
Lidando com o que Não é para
Nosso Bico (pg. 94 e 95)
Interagir
com algo que “não é para o nosso bico” parece um contra-senso.
Se algo é da dimensão do que “não é para o nosso bico”
deveria estar para além de qualquer estrutura de interação.
Teremos, portanto, que reconhecer que o que qualificamos como não
sendo para nosso bico, na verdade, não está ao alcance da nossa
compreensão. No entanto, interagimos com aquilo que não
compreendemos como uma experiência. O que não pode ser apreendido
ou capturado por nosso entendimento permanece ainda sendo
experimentado. Não compreendemos a razão de algo acontecer, mas
temos que conviver com a realidade desta “não-compreensão”.
Desta maneira, estamos nos referindo à forma de interagir com o que
não compreendemos através do conceito de “lidar com algo que não
é para o nosso bico”. Mencionamos anteriormente duas formas de não
aceitar tal conceito: 1) ao considerar algo da esfera da desordem
(preservação da integridade da consciência) e 2) negando esta
realidade, ao assumir que, sim, “é para nosso bico”. Vamos
tentar abordar aqui formas de lidar com o conceito sob a perspectiva
de estruturas de ordem (esfera da fé).
Com Medo do Conhecido (107
a 112)
Vivemos
com um temor falso. Acreditamos que o que nos causa medo é o
encontro com o desconhecido, mas desde quando se pode realmente
sentir medo do que não se conhece? Na verdade, nossa antecipação,
nossa preocupação, nossa angústia e nosso controle é que não
toleram lidar com situações nunca antes experimentadas sem buscar
preenchê-las com vivências passadas ou fantasias.
(...)
Queremos
impor ao próprio desconhecido a condição de conhecido e isto é
próprio do controle.
(...)
Buscamos
constantemente refúgio no medo, pois é ele que ocupa o escuro com
possibilidades conhecidas, o futuro com possibilidades conhecidas, a
falta com possibilidades conhecidas, e assim por diante. Os macabros
seres que habitam as cortinas e suas sombras em noites de tempestade
estão a nosso serviço, deseducando-nos do atributo da entrega. Fica
assim preenchido pela fantasia cada espaço de escuro, como se ela a
tudo iluminasse. Nossa vida passa a ser de uma claridade única, não
descansamos à penumbra em momento algum. Marcados na testa pelo
controle, preferimos o que é pior ao descontrole.
(...)
O vício
de vida de preencher o desconhecido com temores do conhecido é uma
coisa que devemos aprender a combater. Entretanto, como em toda a
situação de vício, é dificílimo livrar-nos dele. É comum
dizermos a alguém que esteja sob algum vício que se controle. Não
percebemos que com isso estamos aprofundando ainda mais o vício.
Todo o vício é em si uma manifestação exagerada de controle e
jamais sairemos do vício pelo controle sem cair em outros vícios.
Se não quisermos promover apenas a transferência de um vício a
outro, devemos dizer aos viciados: descontrolem-se.
(...)
...o
controle do prazer através da repetição do conhecido é uma
conquista menor e não responde aos anseios da própria vida. A vida,
mais cedo ou mais tarde se subleva.
Na
verdade, a repetição e a expectativa do que podemos obter a partir
do que nos é conhecido realiza uma conquista no plano do controle,
através do sacrifício de um ingrediente essencial da existência –
o tempo.
(...)
“temor
aos céus” – Extremamente mal compreendido, este termo não
representa o medo de alguma punição (medo do conhecido) mas o temor
ao mistério. Ao contrário, o que inspira este temor é o respeito á
grandiosidade de tudo o que está diante de nossa pequena
compreensão. Seu impacto é o oposto do medo do conhecido, que nos
paralisa e nos faz fugir. O medo dos céus nos chama a tomar posse de
nossas vidas, assumindo-as de forma ativa. Implica, desta forma, que
quando nos esquivamos de cumprir o que nos cabe estamos violando
estruturas muito além de nossa compreensão e capacidade de
aferição. O temor aos céus é o verdadeiro temor ao desconhecido.
É um temor que não produz resíduos de morbidez, pois nos remete
constantemente de volta à vida e à profunda necessidade de que a
vivamos em sua plenitude.
Teria Sido Melhor não Ter Nascido!
(pg. 113 a 120)
“Por
dois anos e meio, os discípulos de Hilel e Shamai engajaram-se em
violentas disputas. A escola de Shamai dizia: “teria sido melhor –
ou mais simples – não ter nascido”. A escola de Hilel, por sua
vez, dizia: “é melhor se ter nascido”. Após trinta meses de
debates, realizou-se uma votação. E, finda a mesma, a casa de
Shamai saiu-se vitoriosa. Sim, realmente, teria sido melhor ao ser
humano não ter nascido – porém, tendo nascido, deve fazer um
constante balanço de sua consciência, de sua alma, e tornar
precisas as suas ações, de maneira a encontrar nelas um
significado.” (Talmude Babilônico)
(...)
Não
devemos temer a crueza desta afirmação, pois ela é, em si,
libertadora. Faz com que a busca de significado da vida se desvincule
de uma sensação de lucro, saldo positivo ou ganho real. Se
considerarmos que nascer não é melhor nem mais simples do que não
nascer, eliminamos qualquer tentativa obsessiva de querer viver a
vida ao máximo, otimizando prazeres e sensações, pois este
procedimento não tem qualquer efeito nem consegue neutralizar a
afirmação “melhor não ter nascido”. Ter vivido bem no passado
não modifica em nada a realidade da velhice, ou a realidade do que
já passou, pois o que já foi não é mais esfera do prazer. Mesmo a
sensação de “vivi muito” não neutraliza nossa dor na
despedida, apesar de nos trazer o consolo de não nos culparmos por
aquilo que não fizemos. No entanto, tudo isto é firula, é detalhe,
numa realidade que odeia detalhes. Só a capacidade de encontrar
sentido e de dar significado a nossos atos mais do que qualquer
prazer derivável deste mundo sobrevive à claridade da percepção
de que “melhor teria sido não nascer”.
Não há
aqui qualquer condenação ao prazer nem a se viver da melhor maneira
possível. Esta afinal é uma questão de bom senso e obrigação
dentro da própria realidade do Amor. O que está sendo dito aqui é
que a única estrutura de nossas vidas que não despenca diante da
Verdade é a estrutura de sentido e significado que damos às nossas
vidas.
(...)
Não há
como amar a vida sem que sua despedida seja dolorosa. Esta dor pode
ser como a do parto – a dor de quem abdica de um mundo perfeito em
si mesmo, apenas para descobrir uma outra realidade além do útero.
A possibilidade de aceitarmos a vida como um todo, e não apenas o
que nos parece ser a “cobertura da torta”, o melhor, só nos é
possível com uma mentalidade de que “melhor teria sido não
nascer”. Os prazeres e proveitos deste mundo são parte do efeito
colateral de nossa estada. A possibilidade de dar significado a
nossas vidas, no entanto, é o colete salva-vidas com o qual fazemos
a transição não desesperada entre o antes e o depois da perda, o
antes e o depois da morte.
Os Incríveis Momentos em que não
Temos Saída (pg. 121 a
129)
(...)
Uma
imagem em particular me ocorre quando busco resgatar estes instantes.
De minha infância praieira, recordo-me da sensação de estar no mar
e perceber ao longe uma gigantesca onda se formar. O repuxo e a
profundidade da água já não mais permitiam nadar até a areia e
não restava outra alternativa a não ser enfrentar a onda.
Recordo-me destes momentos, em que uma única fração de tempo
congelava a descoberta: “não tem saída”.
(...)
É como
se estivéssemos estabelecendo que “não haver saída” é a
experiência imaginária em que gostaríamos de estar em outro
“aqui-e-agora”, que torna insuportavelmente pesado o compromisso
com o nosso verdadeiro “aqui-e-agora”. Moisés sabe o segredo:
“fica”. Fica aqui, põe os pés no lugar onde realmente estás e
haverá saída. Ela não está em voltar à areia para contemplar a
onda tomando um sorvete, mas na interação gelada com a onda.
(...)
Estar
diante da onda no instante de mergulhar e sonhar com o sorvete em
terra firme, ou simplesmente voltar-se para trás, vislumbrando a
possibilidade de fuga, configura o próprio desespero. “Ficar” –
estar no lugar e no momento – é o passo inicial para “marchar”.
Ao marchar, por incrível que possa nos parecer, faz-se presente uma
dimensão de “mar que se abre para nossa passagem”. Não é
milagre, não é necessariamente o que gostaríamos que acontecesse,
mas é o nosso processo, e a garantia de que, para preservá-lo,
“mares que se abrem” não são mais do que um fenômeno
corriqueiro.
O Maior de Todos os Terrores (pg.
130 a 134)
O desperdício de vida,
quando atinge níveis crônicos, é uma das piores misérias humanas,
senão a pior. Expõe a falta de sentido com que pautamos nossos dias
e despeja sobre nós todo o pesar da constatação por parte dos
rabinos de que seria melhor não ter nascido, com a agravante de não
realizarmos o que recomendavam como única resposta humana à
existência: a atribuição de sentidos.
Confrontado
por esta realidade, o ser humano é atormentado por uma carência
existencial só preenchível por aquilo que menos dispõe no final da
vida – o tempo.
Aquele que Ordenou que o Óleo
Ardesse, que Diga ao Vinagre que Queime – O Direito de Pedir (pg.
135 a 139)
A
entrega, como vimos, é uma sintonia muito fina com a vida. Por um
lado, ela faz fronteira com o apego, por outro, com a resignação.
(...)
A
diferença básica (entre entrega e resignação) está no fato de
que na dimensão da entrega honra-se a realidade da Verdade da mesma
forma que se honra a realidade do Amor, enquanto que a resignação
capitula por completo à realidade da Verdade: aquele que se entrega
mantém sempre uma comunicação, por mais tênue que seja, com a
esperança, sob a perspectiva do mundo do amor.
(...)...
o espaço da entrega não é avesso aos nossos quereres; ao
contrário, a partir deles é que este espaço se define.
(...)
Peça
sem exigir, reconhecendo que se pode pedir, que esta é uma obrigação
humana. A entrega é a anulação da perspectiva calcada no ego, mas
jamais perde o contato com o eu interior. Este eu não precisa que as
coisas aconteçam da maneira desejada, mas não deixa de apreciar, no
entanto, o estético, a ordem e o prazeroso.
Tanto na
entrega quanto na resignação, o sujeito é o ego. Na entrega,
porém, não nos perdemos no todo; ao contrário, preservamos uma
individualidade que ainda quer.
A Esgotabilidade da Tristeza (pg
143 a 145)
Quando
nos sentimos tristes buscamos nos distrair, ocupar ou consular com
coisas que nos alegrem. Não percebemos que desta maneira
fortificamos a experiência da tristeza. Isto porque a tristeza a
gente encara de frente, olhando direto em seus olhos. Experimente
aceitar a tristeza quando ela se instala. Deixe por momentos que o
aperto na glote se misture com o amargor do coração e, ao agarrar a
tristeza, descubra sua esgotabilidade. Se corrêssemos ao encontro de
todas as nossas tristezas, perceberíamos que elas são sintomas da
alma e que das lágrimas que esta pode gerar surge a possibilidade do
arco-íris, de um novo dia com renovada fé.
O medo
da tristeza, portanto, fertiliza a sensação de desespero. Já a
tristeza em si, ao contrário, é um dos portais rumo à fé. Afinal,
acaso não será real a experiência que vivenciamos quando, depois
de muito chorar, passamos a sentir nosso coração leve e vemos novas
perspectivas surgirem diante de nós? A verdade é que não
explicamos este fenômeno ao concebê-lo apenas como uma descarga de
sentimentos, como se estes possuíssem um volume que pudesse ser
escoado. A razão de a tristeza profunda ser seguida de uma sensação
de esperança tem a ver com um ensinamento que descobrimos ao
entregar-nos à tristeza. Revela-se a nós o fato de que cada
instante traz em si os meios para que lidemos com ele. Por mais
terrível que possa ser ou parecer nossa realidade, há sempre à
nossa disposição uma forma de vivê-la.
Na
verdade, acreditar que cada momento traz em si tudo o que ele mesmo
possa vir a exigir de nós é a maior de todas as esperanças. Esta
esperança traduz a confiança que temos em D’us, no Universo ou na
Natureza de não violentar nosso intelecto. Sabemos que não podemos
esperar nem cobrar que este mundo não nos faça conhecer nenhuma
perda, ou até mesmo a perda de nossa própria vida. No entanto, é
um ato de fé que não fere nossa experiência da realidade esperar
que cada situação traga como parte de sua realidade os meios pelos
quais podemos suportá-la e lidar com ela.
No
Talmude há um dito que expressa uma lógica referente às leis que
poderia ser estendida às leis naturais, existenciais e espirituais.
Diz esta máxima: “Não se decretam leis ou éditos que não possam
ser cumpridos.” Confiar não é o ato de esperar que nada de errado
nos aconteça, mas acima de tudo ter certeza de que seja qual for o
édito, este virá sempre acompanhado dos meios para ser suportado.
Esta é, na realidade, exatamente a definição de não se
desesperar.
Isto
vale para a angústia e para a ansiedade: o fundamental não é que
se procure sublimá-las, mas vivê-las. Quando vividas, elas se
esgotam.
(...)
Esta
capacidade de concentrar ansiedade, tristeza e luto não se consegue
através de fuga, mas do enfrentamento destes sentimentos. Todos
estes sentimentos podem ser relevados se vividos profundamente. A
evidência maior se encontra no sorriso que desponta depois da
entrega ao pranto, ou na sensação de triunfo e transcendência que
experimentamos depois do sofrimento.
A
tristeza é uma oportunidade, não deve ser perdida. Se ela passar
por você, persiga-a com a certeza de que ela lhe indicará o caminho
para um “oásis”. A tristeza, pois, tem o poder de restabelecer
nossa confiança de que cada momento contém em si a forma de ser
enfrentado. Cada vez que vivemos a tristeza e a suportamos, ela
fortifica nossa esperança de que também nos céus prevaleça a
lógica que evita que se baixem decretos que estejam além das
possibilidades daqueles que estão sujeitos a cumpri-los.
O
Ensinamento deste Exato Momento (pg.
161 a 164)
...Toda
a interação entre nossas vidas e uma dada situação tem amarras,
pontos de contato, que são, na verdade, a própria definição de
nosso “eu”. Minha existência diante de outra situação de vida
automaticamente define um outro eu. (...)
As
grandes depressões e dificuldades de centramento de uma pessoa
surgem exatamente desta desconexão entre existir e a situação onde
se existe. São as doenças de não sabermos onde estamos, das crises
de sentido que com frequência se abatem sobre nós. São os
“resfriados psico-espirituais”, pois estão constantemente se
aproveitando de nossas baixas de resistência exatamente nesta área
de equilíbrio entre ser e estar. O que são as pequenas crises que
pedem por sábados, as médias, que pedem por férias, as grandes,
que pedem por anos sabáticos, ou as megacrises, que nos pedem uma
nova vida por completo? São tentativas de correção das defasagens
que se avolumam por não estarmos existindo na situação de vida, no
“agora-mesmo” de cada instante, enfim, por não estarmos no lugar
onde estamos.
(...)
A
tradição judaica reconhece, além da definição de nosso eu
existencial como a harmonia entre a existência e a situação da
existência, que cada interação destas é associada a uma mensagem,
uma aprendizagem. Ora’at há-sha’á – a aprendizagem do agora –
é única, por ser produto exatamente da interface entre um dado
momento da existência e uma dada situação. A riqueza de nossas
vidas, ou mesmo a sabedoria que acumulamos através da vida, é
resultante direta das vezes em que soubemos absorver o nosso
ensinamento do momento.
Os Atrativos de se Ficar (pg.
167 a 170)
A mente
humana e sua capacidade de imaginar criaram a possibilidade do que
hoje conhecemos por realidade virtual. Construímos “realidades”
dentro de nossas mentes com tamanha facilidade e frequência que
somos obrigados a checar constantemente em que medida estas
“realidades particulares” distorcem ou assumem o lugar da
realidade compartilhada com os outros.
Criamos
assim um mecanismo de grande eficácia para nos proteger do que nos é
desagradável. Não é por acaso, portanto, que uma das soluções
mais comuns para nossos desesperos rotineiros sejam os sonhos de
viagem, a criação de realidades virtuais em plena realidade
externa. Ir para outro lugar, longínquo de preferência, é
geralmente uma boa maneira de se evitar as dificuldades de nossas
vidas. Desde aqueles que se deslocam pelo espaço utilizando os
temperos, os rostos e as culturas para ocultar seu medo de “ficar”,
até os que singram pelo tempo imaginando momentos no futuro onde as
dores e complicações do presente fiquem esquecidas, todos são
marinheiros que não encontrarão porto. Há algo de extremamente
perigoso na opção de partir: ela camufla, através de atitudes de
aparente busca, formas sofisticadas de fuga.
(...)
Uma das
formas de resgatar o valor do presente e de se criar as condições
para ficar está na desmistificação do futuro. Para isto, devemos
reconhecer que nossos sonhos do tipo “estou louco para que fique
pronto, para que chegue, para que eu possa ver...” são compostos
apenas dos fragmentos que selecionamos do futuro. O futuro é maior e
junto com o que queremos ver, virá também aquilo que não queremos
ver. Portanto, o presente, apesar de prometer menos retornos por não
poder oferecer oportunidades ilimitadas, é um investimento de muito
menor risco. Tamanha pode ser a diferença de “lucro” na
discrepância entre a proporção de segurança do presente e o risco
especulativo do futuro, que encontraremos por este mundo afora uma
infinidade de casos de enriquecimento de vida no presente e outra
infinidade de indivíduos levados à bancarrota por investirem
exclusivamente no mercado aventureiro do futuro.
No
presente há possibilidade de encontro e salvação; no futuro, não.
O futuro é estéril de “agora-mesmos”. Representa um turismo no
tempo que se justifica como lazer, mas que, se tornado busca, camufla
fugas e reforça estruturas de desespero.
(...)
Ficar
está relacionado a sonhar com as opções do agora, fantasiar com o
agora. A distinção é que as opções do presente são reais e a
fantasia do presente é a criatividade. Se pudermos nos rejubilar nas
incríveis possibilidades e opções do agora, utilizando-nos da
criatividade, nos tornaremos viajantes do ficar, planejadores do
presente e senhores da esperança. Há muita gente com inveja
daqueles que podem sonhar com o futuro, quando deveriam invejar e
tomar como modelo todo aquele que consegue sonhar com o presente.
Con-solo e Con-todos (pg.
180 e 181)
A
interação com o outro é a essência do consolo.
(...)
Para se
con-solar, um indivíduo deve sair de seu pequeno mundo e se abrir
para a realidade do con-todos. É esta realidade de todos, do Todo,
do outro e da morte contida na própria natureza da vida que ele deve
levar para dentro de si e elaborar só, consolar-se. Porém, a
possibilidade de se encontrar esta paz não está dentro de nós.
Torna-se fundamental que sejamos abraçados pela comunidade, pela
espécie ou mesmo pela vida, como um todo, e que nos seja afirmado:
“não tome isto como algo pessoal... assim é... resgatemos também
no que foi tão belo e maravilhoso a gratidão por ter sido
possível... assim é a vida”.
Para que
haja a possibilidade de con-solo, é prerrogativa que não se “raspe
as panelas” e que se tenha espaço para que, nas “bordas”, o
quinhão dos outros nos permita fazer parte de uma realidade e de uma
justiça maiores do que aquela sob o comando dos nossos desejos e
expectativas. A justiça da vida, do planeta e de outras estruturas
maiores são as únicas capazes de dar conta da realidade da morte.
Sozinhos estamos num mundo que não tem saídas, ou melhor, cujas
saídas não conseguimos reconhecer como tais.
Surdo, Sim – Cego, Não! (pg.
182 e 183)
... Todo
o enlutado tem direito (talvez obrigação) de brigar com D’us
(natureza, ordem etc.) como parte de seu consolo. Deve, portanto,
reconhecer que sua expectativa de estruturas de ordem perceptíveis a
partir da dimensão do Amor foi traída. Já vimos que esta “traição”
é parte de tudo pelo qual somos gratos, mas ainda assim, é próprio
para a vida chorar, lastimar e mesmo estremecer as relações com o
Todo. Este conflito, quando sadio, restitui uma fé mais profunda do
que a existente anteriormente. Esta nova fé passa a ser marcada por
níveis maiores de entrega, típicos de quem conseguiu aceitar o que
deve ser, ao invés do que gostaria que fosse.
Enumera Teus Dias (pg.
182 a 189)
Certa
vez ouvi o comentário de um rabino que dizia nunca ter sido
procurado por uma família a quem algo de bom tivesse ocorrido, com
uma questão teológica do tipo: “Rabino, por que D’us fez isto
de bom comigo? Por que logo comigo?”. As pessoas só ficam
teologicamente intrigadas quando coisas ruins lhes acontecem. Na
verdade, quantas vezes as pessoas acorrem a sacerdotes para
“consolar-se” de coisas extraordinárias que lhes tenham
acontecido e para as quais não têm respostas? Pois é exatamente
por nos permitirmos ficar perplexos com algo de bom que nos acontece,
sem tomarmos a ordem por algo dado, como processo óbvio e
obrigatório por parte do universo, que podemos integrar a gratidão
no espaço normalmente alocado ao pavor. Coletar nossa vida e
trazê-la conosco, não aceitando que fique espalhada pelo tempo do
passado, faz com que sejamos e nos sintamos hoje a soma desta
acumulação.
Rastreando os Limites (pg.
195 a 199)
A
Verdade traz todas as dimensões que estão fora do alcance de nossa
vontade. O nosso descontrole é a prova maior da regulamentação
superior que ordena o que nem sempre nos parece ordem. Querer
compreender além é querer exercer controle sobre aquilo que não
nos é dado controlar, da mesma forma que, como diz o comentário,
tornar a sepultura o final da linha é uma forma lógico-objetiva de
dar uma solução conhecida ao desconhecido.
A Impermanência da Morte (pg.
200 a 203)
Para o
místico, o vazio não é o caos, mas um rompimento. Desta
perspectiva, o vazio é o único indicador de razões para além da
funcionalidade. O vazio é como um indispensável mestre na arte de
suportarmos a descontinuidade de nosso conhecimento. O lugar em que a
razão, a causalidade e a previsibilidade cessam, ao contrário do
que poderia parecer não é o local do desespero, mas seu único
antídoto. O vazio fala da impermanência de tudo e não exclui disso
a própria morte. Tudo neste universo é fluxo e “empalhar” a
morte como permanente é estender a arrogante expectativa do
conhecimento sobre o que foge ao conhecimento.
excelente local para retornar quando estivermos com sede.
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