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terça-feira, 29 de junho de 2010

A história da arte, de Ernst Gombrich

Gostar é um sentimento; não se pode escolher gostar ou não gostar de um quadro, de uma escultura, ou de um prédio. Mas conhecer está ao alcance da nossa vontade. O livro A história da arte é perfeito para quem quer conhecer as idéias e os objetivos que estão por trás das principais obras de arte da nossa história. Seu autor, Ernst Gombrich, escreve de forma simples e cativante, e teve o bom senso de analisar apenas obras que são mostradas ao leitor nas ilustrações.

Como em tudo na vida, conhecer ajuda a descartar hábitos e preconceitos. Ao conhecer melhor essas obras de arte, o gosto do leitor pode sofrer modificações: gostar do que lhe era indiferente; gostar mais do que já gostava; e até gostar, mesmo muito, de obras que mal podia olhar.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Jabulani

As reclamações se justificam. A Jabulani é uma bola melindrosa, rebelde e exigente. Para a copa do mundo de 2014, no Brasil,a FIFA deveria encomendar uma bola mais tradicional e obediente, fácil de controlar. Seu nome? Amélia, é claro.

Para esta copa, no entanto, não será bom nem para jogadores nem para torcedores continuar esta briga com a Jabulani. Os jogadores têm que trazer a Jabulani para o seu lado. Conversar com ela, fazer um carinho, aprender o jeito de tratá-la com firmeza, mas sem magoá-la. E nós, torcedores e admiradores do futebol, podemos rir das jabuladas de quem não se adaptou ao seu temperamento difícil, e admirar os jogadores que venceram o desafio de conquistar (ou domar) a Jabulani. Mesmo nesse início da competição, não faltam jogadas que mostram o espírito guerreiro daqueles que conseguiram transformar a dificuldade em vantagem, se adaptando à nova situação e trazendo a Jabulani para o seu time.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Platão e a Odisseia

A preocupação central de Platão com a virtude e com o estado justo pode muito bem ter tido sua origem na leitura da Odisseia. Afinal, na ausência de Ulisses, “se é que Ulisses existiu”, Ítaca é uma cidade-estado que não protege seus cidadãos. Na viagem de Telêmaco em busca de notícias do pai, ele passa por cidades-estados em que as pessoas são educadas e acolhedoras. Além disso, sempre que Ulisses chega desamparado a uma terra desconhecida, ele se questiona:

“Ai de mim, a que terra de homens mortais chego de novo?
Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?
Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?”

Ainda entre os gregos

Livros como a Odisseia e a Ilíada são fantásticos, mas ao mesmo tempo lançam para aqueles que pretendem escrever o desafio de ultrapassá-los. Esse desafio foi enfrentado de modo brilhante na Grécia antiga por Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, com a tragédia, e por Aristófanes, com a comédia. Se os cantos homéricos abarcaram o leque do comportamento humano, os três trágicos, com os recursos do teatro, exploraram a profundidade psicológica dos personagens, aproximando-os dos leitores, independentemente da motivação (cruel, arrogante, ambiciosa, caridosa, corajosa...) de seus atos. E Aristófanes, do qual infelizmente só li uma peça, é o pioneiro na arte de mostrar o homem ao homem fazendo-o rir de si mesmo.

Odisseia, de Homero

A primeira obrigação de quem conta uma história é encantar o leitor ou o ouvinte. A literatura deve agarrar o leitor, arrancá-lo de seu mundo e transportá-lo para o mundo criado pelo livro. Entre os gregos a Odisseia tinha esse poder. A tradução em verso de Frederico Lourenço cumpre plenamente o objetivo, revelado no prefácio, de “devolver ao leitor de língua portuguesa o prazer do texto homérico”. O tradutor acrescenta:
Significa isto que, apesar de vertida do grego e com a máxima fidelidade ao original, não é uma tradução arcaizante nem acadêmica. É uma tradução para ser lida pelo gozo de ler.
Fiel a este propósito, resisti à tentação de salpicar o texto com notas, convicto de que o intuito principal que presidiu à composição da Odisseia foi de enlevar e comover os ouvintes por meio de uma história empolgante, maravilhosamente contada.
Mas a literatura em geral, e a Odisseia em particular, fazem muito mais com o leitor. A literatura tem o poder de salvar o homem. Salvamento que só será possível, aliás, se os dons encantatórios da narrativa forem liberados.

A Odisseia envolve o leitor em uma história que é um vasto painel do comportamento humano. A narrativa está dividida em três partes. Na primeira, encontramos Telêmaco e Penélope, filho e esposa, desamparados pela prolongada ausência de Ulisses, rei de Ítaca. Os arrogantes pretendentes de Penélope se apoderaram do palácio e planejam a morte de Telêmaco. Na segunda parte, a viagem de retorno de Ulisses a Ítaca, o herói ficará progressivamente mais vulnerável conforme vai perdendo seus homens e barcos, até chegar à condição de andarilho solitário. A terceira parte mostra Ulisses de volta à Ítaca e à sua casa, mas na aparência de um velho mendigo. Nas três partes, a ausência de normas estabelecidas libera os personagens para agir de forma arrogante e violenta com os outros, ou, ao contrário, e apesar das dificuldades pessoais, manter-se fiel aos valores de justiça e amor ao próximo.

O leitor pode observar desde personagens extremamente bondosos, como o porqueiro Eumeu e o velho Mentor, até extremamente maldosos, como Antínoo e Eurímaco. Mas também constatará que a maioria atua numa zona intermediária, de variada gradação, como o pretendente Anfínomo, o arauto Médon, o aedo Fêmio, o povo que assiste aos destinos da cidade, e a maioria das serviçais do palácio de Ulisses. Como exemplo dos extremos de comportamento, podemos copiar este trecho, que contrasta o comportamento arrogante do cabreiro Melanteu com o compassivo do vaqueiro Filécio diante do mendigo estrangeiro (na realidade Ulisses disfarçado):

Aproximou-se então Melanteu, o cabreiro de cabras,
trazendo as melhores cabras de todos os rebanhos para
o jantar dos pretendentes; com ele vinham dois pastores.
Atou as cabras debaixo do pórtico ecoante,
e dirigiu-se a Ulisses com palavras insultuosas:

“Estrangeiro, ainda aqui estás, a estorvar dentro de casa,
pedindo esmolas? Não queres sair daqui para fora?
Já estou a ver que não nos despediremos, tu e eu,
sem uns bons murros, pois é de forma desavergonhada
que pedes esmola. Além de que há outros jantares de Aqueus."

Assim falou; mas não lhe deu resposta o astucioso Ulisses.
Abanou a cabeça, com pensamentos terríveis no fundo do coração.

Depois destes chegou um terceiro, Filécio, condutor de homens:
trazia para os pretendentes uma vitela estéril e gordas cabras,
que barqueiros tinham transportado do continente (esses que
também transportam homens, se com eles forem ter).
Atou os animais debaixo do pórtico ecoante,
e aproximou-se do porqueiro com estas palavras:

“Quem é este estrangeiro, ó porqueiro, que chegou há pouco
a nossa casa? De que linhagem de homens declara ele ser
originário? Quem são os parentes? Qual é sua pátria?
Vítima do destino! Na verdade, de corpo parece um rei.
Mas os deuses dão a tristeza àqueles que muito vagueiam,
mesmo fiando para reis o fio da dolorosa desventura.”

Assim dizendo, aproximou-se de Ulisses e deu-lhe a mão.

Mas como a Odisseia pode salvar o homem? Há hoje uma tal descrença na literatura que a maioria julgará essa pergunta uma estultice. Mas eu insisto na minha fé na importância da literatura. Aqui estamos falando de civilidade, de educação. O leitor da Odisseia, justamente por não ser um pretendente, por não ser do povo de Ítaca, por não ser serviçal do palácio de Ulisses, consegue julgar com distanciamento os comportamentos dos personagens. A leitura permite ao leitor sair-se de si, observar o mundo sem as distorções provocadas pelas lentes de seus ódios, rancores, medos e desejos. É possível distinguir o bem e o mal do bom e do mau para si.

Ao fechar o livro e voltar para o nosso mundo, claro que não somos mais leitores. Ainda temos desejos, preferências, sentimentos como ódio, medo, inveja e rancor, e sabemos respeitar em nós estes sentimentos. Mas sabemos reconhecer esses sentimentos como nossos, e não mais tomaremos os julgamentos centrados neles como verdades absolutas, como justificativa para qualquer ato. Alguma prudência fará frente a nossa arrogância. Além disso crescerá dentro de nós um sentimento de admiração e submissão ao bem, que não seja simplesmente o meu bem. E ser educado e civilizado é justamente a capacidade de respeitar o próximo, acima de nossa inclinação mais imediata.

Muitas histórias do Livro das Mil e uma Noites são semelhantes às histórias da Odisseia. Tanto a Odisseia como o Livro das Mil e uma Noites trafegam entre o verossímil e o mágico com uma história de fundo verossímil trazendo as narrativas mágicas por meio de personagens narradores. Mas é a história de fundo do Livro das Mil e uma Noites que mais revela a fé no poder educativo da literatura. Sherazade se oferece como esposa do rei, não para morrer no dia seguinte como as outras esposas, mas para salvar a cidade e mesmo o próprio rei. Ela não espera convencer o rei com argumentos, jamais. Acredita nas histórias maravilhosas que sabe contar. Tal é sua fé no poder educativo de tais histórias que arrisca a sua própria vida. E são histórias encantatórias, envolventes, em que frequentemente encontramos, como na Odisseia, personagens sofredores cruzando tanto com pessoas injustas e perigosas, quanto com pessoas compassivas e solidárias.