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quinta-feira, 25 de março de 2010

TERRA SONÂMBULA – brincriações com as palavras

Não sabia que as palavras eram tão férteis, dadas a juntamentos e procriações. Nas postagens anteriores já apareceram alguns exemplos: brincriação, miraginação, chafundar, sonhambulante. Acrescento outros exemplos retirados do livro:

Redemoníaca = redemoinho + demoníaca
O velho e o moço querem segurar o corpo do covador, mas a corrente, redemoníaca, cresce em fúrias desordenadas.

Inutensílio = utensílio + inútil
Já o inutensílio tinha o comprimento de uma porção de metros.

Exactamesmo = exatamente + mesmo (reforça e tira o sufixo mente, que pode provocar desconfiança)
— É por isso que essa guerra não acaba nunca mais. É assim, exactamesmo.

Veementindo = mentir + veemência
Neguei, veementindo. (pg. 142)

Luaminosas = luminosa + lua
Algumas belezas, em mulher se tratando, nascem depois da meninice. São essas as mais luaminosas.

Muçulmania = mania + muçulmana
Sempre aquelas muçulmanias, servindo os prazeres do senhor. Nos cumes do acto de amor, ela interrompia: assim, está bem para si?

Carolinda = Carolina + linda
Eu sei que em cada mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava esta doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito.

Embriagordo = embriagado + gordo; atordoído = atordoado + doído
Deitado num velho muro, ventre inchado, embriagordo. Atordoído, titupiante, Quintino se explicou:
— Hoje sou cobra com cócega na barriga, não saio do lugar.

Timiudamente = miúdo (criança no português de Moçambique) + timidamente
Timiudamente, despontam os primeiros fios de conversa e os dois se vão confiando.

Administraidor = administrador + traidor
— É culpa de Estevão Jonas, meu marido. É por isso que lhe chamo administraidor.

quarta-feira, 24 de março de 2010

SONHO/FANTASIA/ESTÓRIA EM TERRA SONÂMBULA (citações)

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (pg. 5)

A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda vai se enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos. (pg. 14)

As estórias dele faziam nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo.(pg. 15)

E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre estes dois mundos. (pg. 17)

A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios de nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. (pg. 18)

Então ele com um pequeno pau rabisca na poeira do chão: “AZUL”. Fica a olhar o desenho, com a cabeça inclinada sobre o ombro. Afinal, ele também sabia escrever? Averiguou as mãos quase com medo. (pg. 37)

Muidinga repara que a paisagem, em redor, está mudando suas feições. A terra continua seca mas já existem nos ralos capins sobras de cacimbo. Aquelas gotinhas são, para Muidinga, um quase prenúncio de verdes. (pg 49)

Era verdade: que valores arrecadava o autocarro agora que as reservas de comida se esgotavam? Porém, para Muidinga, não regressar seria enorme desgosto. Ele se admira: o que o prendia àqueles destroços na estrada? Então, lhe veio a resposta clara: eram os cadernos de Kindzu, as estórias que ele vinha lendo cada noite. E sente saudade das linhas, tantas quanto os passos que agora desfia pelos atalhos. (pg. 51)

Ela só tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história. (pg. 62)

E ao ouvir os sonhos de Tuahir, com os ruídos da guerra por trás, ele vai pensando: “não inventaram ainda uma pólvora suave, maneirosa, capaz de explodir os homens sem lhes matar. Uma pólvora que, em avessos serviços, gerasse mais vida. E do homem explodido nascessem os infinitos homens que lhes estão por dentro”. (pg. 68)

Muidinga olha a paisagem e pensa. Morreu um homem que sonhava, a terra está triste como uma viúva. (pg. 89)

— Não dorme, tio?
— Não. Desconsigo de dormir.
— É por causa do homem do rio.
— Nada. Nem lembro isso. É que sinto falta das estórias.
— Quais estórias?
— Essas que você lê nesses caderninhos. Esse fidamãe desse Kindzu já vive quase conosco. (pg. 90)

À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas a cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (pg. 99)

Precisava salvar Farida porque ela me salvava da miséria de existir pouco. Havia, por fim, um alguém que não estava metido no mesmo lodo em que chafundávamos, alguém que mantinha a esperança, louca que fosse. Farida, ao menos, tinha uma ilha com um inviável farol, um barco que viria de lá onde habitam os anjonautas.

Ao avistar a praia de Matimati, comprovei como são nossos olhos que fazem o belo. Meu estado de paixão puxava um novo lustro àquela terra em ruínas. Aquelas visões, dias antes, já tinham estado em meus olhos. Porém, agora tudo me parecia mais cheio de cores, em assembleia de belezas. (pg. 104)

— Sabe, miúdo, o que vamos fazer? Você me vai ler mais desses escritos.
— Mas ler agora, com esse escuro?
— Acendes o fogo lá fora.
— Mas, com a chuva, a lenha toda se molhou.
— Então vamos acender o fogo dentro do machimbombo. Juntamos coisa de arder lá mesmo.
— Podemos, tio? Não há problema?
— Problema é deixar esse escuro entrar na cabeça da gente. Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir. (pg. 125 e 126)

Tudo acontecera na vizinhança do autocarro. Era o país que desfilava por ali, sonhambulante. Siqueleto esvaindo, Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando gafanhotos, tudo o que se passara tinha sucedido em plena estrada.
— É miúdo, estamos a viajar: nesse machimbombo parado nós não paramos de viajar. Me faz lembrar quando andava no comboio. (pg. 137)

O velho pede então que o miúdo dê voz aos cadernos. Dividissem aquele encanto como sempre repartiram a comida. Ainda bem você sabe ler, comenta o velho. Não fossem as leituras eles estariam condenados à solidão. Seus devaneios caminhavam agora pelas letrinhas daqueles escritos. (pg. 139)

Olhando as alturas, Muidinga repara nas várias raças das nuvens. Brancas, mulatas, negras. E a variedade dos sexos também nelas se encontrava. A nuvem feminina, suave: a nua-vem, nua-vai. A nuvem-macho, arrulhando com peito de pombo, em feliz ilusão de imortalidade.

E sorri: como se pode jogar com as mais longínquas coisas, trazer as nuvens para perto como pássaros que vêm comer em nossa mão. (pg. 153)

— Conte, tio. Se é uma estória me conte, nem importa se é verdade. (154)

O que vi ali me encheu de fantasia, estórias de reaver este mundo onde não cabemos. (Pg. 158)

Mais Virgínia repete os contos mais a verdade se resvala: o avô Cruz de olhos louros, hoje; amanhã um negro de rosto carapinhoso. A criançada nem se importa. Verdade, em infância, é um jogo de brincar. Em redor da anciãzinha, os miúdos sempre folgam, sem desilusão. Com gesto largo, ela pede menos barulho. Deixassem chegar, audíveis, as ordens de Deus. Que ele que mandava os viventes descansarem:

— Vocês com vosso barulho nem me deixam ouvir a ordem Dele. Se calhar, até já me mandou descansar, nem dei por isso...(pg 160/161)

— Vovó, deixe ele viver! Só um bocadinho!
— Para o quê?
— Para ele nos contar a estória dele. (pg. 163)

Tuahir mira e admira. Há dias que não se arredam do machimbombo. No entanto, a paisagem em volta vai negando a aparente imobilidade da estrada. (pg. 174)

— O que andas a fazer com um caderno?
— Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
— E alguém vai ler isso?
— Talvez.
— É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
— Mas pai, o que passa com essa nossa terra?
— Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens dormem, a terra anda procurar.
— A procurar o quê, pai?
— É que a vida não gosta sofrer. A terra anda procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos sonhos. (pg. 182)

A menina recordava coisas que nunca houveram. Mas punha tanta alma na lembrança que todos se recordavam com ela. Acontecera com o dilúvio dos dinheiros, moedas chovendo sem parar, cobrindo o chão de pratas e tilintações. E todos refugiados se lançaram de gatas, facocherando na poeira. Não fora a única visão de Jotinha, suas miraginações se seguiam sempre contra o regime da realidade. (pg. 186)

— Pare, Euzinha, pare!
— Não vê que estou parada, o mundo é que está dançar.
Assim, pondo a terra a girar, em brincriação de menina, fechou os olhos com doçura. (pg. 192)

As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água a chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. (pg. 196)

TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO

Em meio à devastação da guerra civil em Moçambique, o menino Muidinga e o velho Tuhair caminham por uma estrada abandonada, murchos e desesperançados. É preciso salvar a alma do menino Muidinga, sem família e sem memória. O corpo do menino foi salvo pelo velho Tuahir, quando todos no campo de refugiados já o tinham abandonado. Mas como pode Tuahir salvar a alma do menino, se a sua, se existe, está escondida sob camadas de desilusão? Também é preciso salvar a alma do velho Tuahir.


Os dois companheiros abrigam-se em um ônibus queimado, próximo ao qual encontram uma mala com roupa, comida e os cadernos de Kindzu. Terra Sonâmbula, de Mia Couto, narra o renascer poético de Muidinga e Tuahir provocado pela leitura dos cadernos de Kindzu. E o que há de mágico nesses cadernos? A narrativa fabulosa da história de Kinkzu, com outras histórias dentro, que despertam sonhos e fantasias. Os sonhos e fantasias transformam a vida de Muidinga e Tuahir, ainda que eles permaneçam naquela mesma estrada.

Mas não é apenas os dois companheiros que escutam as fantasias do caderno de Kindzu, também a terra morta pela guerra escuta aquelas histórias. E, quem sabe, a terra não esteja morta? Quem sabe esteja apenas dormindo? E já comece a se mover, sonhambulante, à força dos sonhos de Tuahir, de Muidinga, de Kindzu...:
"— O que andas a fazer com um caderno?
— Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
— E alguém vai ler isso?
— Talvez.
— É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
— Mas pai, o que passa com essa nossa terra?
— Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens dormem, a terra anda procurar.
— A procurar o quê, pai?
— É que a vida não gosta sofrer. A terra anda procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos sonhos."

DEGUSTAÇÃO NO SITE DA COMPANHIA DAS LETRAS!!! 



domingo, 21 de março de 2010

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

A história contada por José Saramago no livro Ensaio sobre a cegueira começa com um homem que fica cego, de repente, enquanto espera o sinal verde ao volante de seu carro. Além de repentina, essa cegueira é algo estranha, pois o homem ao invés de mergulhar nas trevas, vê tudo branco, como se estivesse imerso num mar de leite. A mulher do primeiro cego o leva ao oftalmologista, que é o médico de olhos e deve saber do que se trata. No princípio nos parece que este médico será o protagonista da história, este médico atencioso e abnegado que estava com o consultório repleto de pacientes e que vai estudar em casa até altas horas à procura de alguma luz sobre o estranho caso de cegueira branca que apareceu num homem com olhos perfeitos – “aquele homem não devia estar cego”. Enganamo-nos, o médico não é o protagonista desta história, nesta mesma noite cega este médico, logo cegam os pacientes que estavam no seu consultório, e nessa escalada cegarão governo, autoridades, soldados, enfim, todo mundo. A nossa protagonista é a mulher do médico, única a enxergar neste mundo de cegos (“...mas nenhum de nós, candeias, cães ou humanos, sabe, ao princípio, tudo para que tinha vindo ao mundo”, pg. 260). A mulher do médico é a única a se entregar ao socorro dos cegos mesmo sabendo do perigo de contágio. Seus olhos guiarão um grupo de desconhecidos que logo se constituirá em uma autêntica família: o médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o menino estrábico, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta. O médico, que não pode dizer nada a respeito dessa cegueira que desafia qualquer razão, terá que se recolher a um papel que nem secundário é, já que a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta tornam-se mais importantes neste mundo transformado, pois, ainda que cegos, entendem melhor a visão da mulher do cego.

O ponto de partida do livro é surrealista: uma cegueira branca que acomete todos menos a mulher do médico, sem qualquer explicação. Mas os fatos relatados são extremamente realistas: a quarentena, o medo, a sujeira, os conflitos, a vida que surge daí, a degradação da sociedade etc. Uma obra-de-arte é um caleidoscópio que permite infinitas visões, assim também se pode ver por trás da narrativa de José Saramago um lindo poema sobre a arte e o invisível para o qual aponta. Afinal, nos dias de hoje a arte deve agradecer se lhe oferecem o papel coadjuvante de mulher do médico. No entanto, como a mulher do médico, a arte é a única a enxergar em um mundo de cegos (“A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”, pg. 241). Se a ciência e os olhos vêem o visível, a arte vê o invisível e com os olhos da arte também o homem é capaz de ver o invisível que dá significado mesmo à vida mais miserável.

Um escritor aparece brevemente no livro, cego também, mas pacientemente escrevendo um livro que ninguém pode ler. Já quase esgotada em seu esforço de ser os olhos do mundo, a mulher do médico entra em uma igreja para se recuperar. Ao levantar o rosto, vê que “todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados, as esculturas com um pano branco atado ao redor da cabeça, as pinturas com uma grossa pincelada de tinta branca, e estava além uma mulher a ensinar a filha a ler, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno, e os dois tinham os olhos tapados, e um velho de barbas compridas, com três chaves na mão, e tinha os olhos tapados, e outro homem com o corpo cravejado de flechas, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma lanterna acesa, e tinha os olhos tapados,(...), só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados em uma bandeja de prata (pg. 301)”. A mulher do médico, as imagens da arte, a literatura, esses olhos servidos numa bandeja de prata, ainda que continuem a ver, também vão se tornando cegos à medida que menos pessoas os enxergam. Quando a mulher do médico informa ao marido que todas as imagens da igreja estão com os olhos vendados, trava-se o seguinte diálogo, iniciado pelo médico: “Que estranho, por que será, Como hei-de eu saber, pode ter sido obra de algum desesperado da fé quando compreendeu que teria de cegar como os outros, pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja (pg. 302)”.

Dentro do livro, há belos quadros pintados com palavras: a mulher do médico que serve água pura em copos de cristal (“No fim, disse, Bebamos. As mãos cegas procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo, Bebamos, repetiu a mulher do médico. No centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar.” pg. 264); as três mulheres lavando a roupa e se lavando na chuva (“três graças nuas sob a chuva que cai”, pg. 267); a rapariga dos óculos escuros ensaboando as costas do velho da venda  preta (“, era um homem de espuma, branco no meio de uma imensa cegueira branca onde ninguém o poderia encontrar, se o pensou enganava-se, nesse momento sentiu que umas mãos lhe tocavam as costas, que iam recolher-lhe a espuma dos braços, do peito também, e depois lha espalhavam pelo dorso, devagar, como se, não podendo ver o que faziam, mais atenção tivessem de dar ao trabalho”, pg. 270).

Ao fim do livro, a cegueira branca desaparece, na rua coberta de lixo as pessoas gritam e cantam. O médico começa a retomar sua preponderância diante das mazelas lógicas: ele irá operar a catarata do velho da venda preta. A mulher do médico, novamente recolhida ao papel secundário, conversa com o marido:

“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”

(Texto de setembro de 2008)

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA

Construí minha última coluna apenas com citações de Viktor Emil Frankl. A idéia foi deixá-lo falar para que, como eu, meus leitores pudessem ter uma experiência direta do seu texto que pudesse levá-los a procurar saber mais sobre o autor e seus livros. Mas dessa vez vou enfrentar o compromisso que assumi de deixar falar minha própria voz, apesar das dificuldades.

Terminados os livros de Viktor Emil Frankl, algumas idéias continuam brincando na minha cabeça. A principal é a inversão de nossa maneira de encarar a vida: ao invés de esperar qualquer coisa da vida, precisamos perceber o que devemos fazer diante da vida, qualquer vida, que nos é dada. Sua experiência no campo de concentração e na psicoterapia o leva a afirmar que mesmo nas situações mais extremas, e mesmo na morte, a vida tem potencialmente um sentido. Infelizmente, não podemos esperar que médico, padre, livro, amigo ou amante nos digam qual o sentido da nossa vida neste momento, respondam à pergunta mais urgente: “O que fazer?” Apenas cada um pode responder a essa pergunta com a própria vida em cada situação/desafio com que a vida nos confronta. E, enquanto durar a vida, nenhuma resposta põe fim à pergunta.

Uma coisa é entender esse ponto de vista, que não me parece complicado. Mas para vivê-lo há muitas dificuldades, das quais a mais básica é a falta de fé, ou pelo menos de um pouco de boa vontade com a vida e com o mundo. Essa é uma grande tarefa, que não consigo iludir com falsidades. Nem, como ressaltou Frankl, é uma questão de querer. Não se ordena, nem a si mesmo, sentimentos como fé, esperança e amor, a não ser que queiramos nos afastar deles.

Jean-Dominique Bauby, redator-chefe da revista Elle, em Paris, em um sábado em que tinha programado passar o fim de semana com seu filho de 10 anos, sofreu um acidente vascular cerebral. Depois de um mês em coma, acordou para descobrir que o acidente deixara seu tronco encefálico fora de circuito, e o tal tronco é passagem obrigatória entre o encéfalo e as terminações nervosas. Era um caso raro do que os ingleses chamam de Locked-in syndrome: paralisado da cabeça aos pés, o paciente fica trancado no interior de si mesmo com o espírito intacto, tendo os batimentos de sua pálpebra esquerda como o único meio de comunicação. E foi através dos movimentos da pálpebra que ele pôde se comunicar com quem se dispusesse a lhe ditar todo o alfabeto, para que, com uma piscada, Jean-Do pudesse passar suas mensagens, letra por letra. Aqui não se podem minimizar as dificuldades e o sofrimento, mas ele conseguiu, de dentro de seu escafandro, manter as relações humanas de antes do acidente e criar novas relações com alguns anjos da guarda que andam pelos hospitais. Para refutar os boatos de que se transformara em um legume, escreveu cartas destinadas aos seus parentes e amigos dando notícias de sua situação. Como antes do acidente tinha um contrato com sua editora para escrever um livro, desistiu do plano inicial da obra e escreveu o que chamou de “cadernos de viagem imóvel”, que se transformou no belíssimo livro “O escafandro e a borboleta”. Com o livro, Jean-Do dá notícia de que dentro do seu escafandro vive um homem. Para mim, a notícia é que dentro de todos os escafandros há algo sagrado, que devemos tratar com dignidade.

No livro sabemos que o pai de Jean-Do, aos 93 anos, sem poder descer e subir as escadas de seu prédio, também vivia em um escafandro, que era o seu apartamento. Será que todos estamos presos em escafandros? Seremos todos, para usar outras imagens do livro, “voadores de asas quebradas, papagaios sem voz”? Também a borboleta sai de um casulo rígido, não sem esforço e paciência, para uma breve vida. Há uns vinte anos alguém me disse que eu parecia um caracol, que por momentos se expõe, mas logo volta a se esconder em sua casa; disse também que eu deveria sair mais da minha concha, correr mais esse risco. De dentro de minha concha de caracol também solto vez ou outra as minhas borboletas: são gestos de amor e compreensão com os filhos e a esposa, e, por que não, esses pequenos textos que escrevo para o Leiame.

(Texto de agosto de 2008)

PORQUÊ E COMO

“Quem tem por que viver suporta quase qualquer como” (Nietzsche)


É demasiado longo o sonho do qual só agora despertamos. Sonhamos que bastava fazer progredir as condições sócio-econômicas de uma pessoa para que tudo caminhasse bem, para que ela ficasse feliz. A verdade é que a luta pela sobrevivência não se acaba, e ponto. De repente brota a pergunta: “Sobreviver? Mas pra quê?” Em nossos dias um número cada vez maior de indivíduos dispõe de recursos para viver, mas não de um sentido pelo qual viver.
(Viktor Emil Frankl)

Foi desprezado ou esquecido que, se uma pessoa chegou a colocar as bases do sentido que procurava, então está pronta a sofrer, a oferecer sacrifícios, a dar até, se necessário, a própria vida por amor daquele sentido. Ao contrário, se não existir algum sentido para seu viver, uma pessoa tende a tirar-se a vida e está pronta para fazê-lo mesmo que todas as suas necessidades sob qualquer aspecto estejam satisfeitas.
(Viktor Emil Frankl)

A busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida.
(Viktor Emil Frankl)

Considero perigosa e errônea a noção de higiene mental que pressupõe que a pessoa necessita em primeiro lugar de equilíbrio, ou, como se diz na biologia, de “homeostase”, ou seja, de um estado livre de tensão. O que o ser humano realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente.
(Viktor Emil Frankl)

Uma vez que cada situação na vida constitui um desafio para a pessoa e lhe apresenta um problema para resolver, pode-se, a rigor, inverter a questão pelo sentido da vida. Em última análise, a pessoa não deveria perguntar qual o sentido da sua vida, mas antes deve reconhecer que é ela que está sendo indagada. Em suma, cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida; à vida ela somente pode responder sendo responsável.
(Viktor Emil Frankl)

Quem ousará prever o comportamento de uma pessoa? Pode-se predizer os movimentos de uma máquina, de um autômato; mais do que isso, pode-se tentar predizer até mesmo os mecanismos ou dinamismos da psique humana; mas o ser humano é mais do que psique.
(Viktor Emil Frankl)

A teoria que a procriação é o único sentido para a vida contradiz e derrota a si própria; se a vida for em si sem sentido, não poderá fazer-se significativa apenas por sua perpetuação.
(Viktor Emil Frankl)

Fica perdido o significado do mundo no modo como ele é descrito pelas ciências. O que, entretanto, não implica que o mundo seja sem significado, mas apenas que a ciência é cega com relação a isso. O sentido está fora do campo perceptivo da ciência. Ele não é descrito por nenhum enfoque científico.
(Viktor Emil Frankl)

Ao iniciarmos nossa discussão sobre o sentido na acepção da logoterapia, já mencionamos que o sentido se refere ao sentido concreto de uma situação com a qual uma pessoa igualmente concreta é confrontada. Além disso, existe logicamente um sentido último, mais amplo. Porém, quanto mais amplo for o sentido, menos compreensível será. Trata-se do sentido do todo, do sentido da vida como um todo. E acredito não ser digno de um psiquiatra, ou de qualquer cientista, negar de antemão a simples possibilidade de um tal sentido universal com base em pressupostos apriorísticos ou doutrinações ideológicas.
(Viktor Emil Frankl)

De fato, é impossível descobrir apenas pelo intelecto se, em última análise, tudo é desprovido de sentido ou se existe um sentido encoberto por trás de tudo. Embora não haja uma resposta intelectual a essa pergunta, é possível assumir diante dela uma decisão existencial. Diante do fato de que é igualmente concebível que tudo tenha um sentido, e que tudo seja desprovido de sentido, ou seja, que os argumentos pró ou contra um último sentido se mantenham equilibrados nos pratos da balança, podemos jogar o peso de nosso próprio ser no prato a favor do sentido, decidindo-nos por uma das duas possibilidades de pensamento. Confrontado com essas duas possibilidades de pensamento, a pessoa que crê num sentido diz o seu fiat ou "amém". "Assim seja, faço a opção por agir 'como se' a vida tivesse um 'supra-sentido'." E com isso acaba se cristalizando uma verdadeira definição: A fé não é uma maneira de pensar da qual se subtraiu a realidade, mas uma maneira de pensar à qual se acrescentou a existencialidade do pensador.
(Viktor Emil Frankl)

O arquivo eterno [do passado] não pode ser perdido – o que é um conforto e uma esperança. Mas também não pode ser corrigido – o que é um alerta e uma advertência. Adverte-nos que, uma vez que nada pode ser removido do passado, com maior razão é dever nosso salvar as possibilidades que escolhemos, remetendo-as para o passado. (...) Se cada coisa fica para sempre armazenada no passado, é importante decidir no presente o que queremos eternizar levando-a a fazer parte do passado. (...) Este é o segredo da criatividade: nós removemos alguma coisa do nada do futuro “transformando-a em passado”. A responsabilidade humana, portanto, está no “ativismo do futuro”, no saber escolher as possibilidades do futuro, e no “otimismo do passado”, isto é, transformando as possibilidades em realidades, pondo-as a salvo no abrigo do passado.
(Viktor Emil Frankl)

Citações retiradas dos livros de Viktor Emil Frankl: Em Busca de Sentido; Psicoterapia e Humanismo; e A Presença Ignorada de Deus.
A forma foi inspirada em O Livro das Citações, de Eduardo Giannetti.

(Texto de julho de 2008)

RETRATO PARA UM ÁLBUM DE FAMÍLIA

O menino de 5 anos ia e vinha no chão da sala montado em seu carrinho. O barulho incomodava a mãe, que tentava lanchar em paz e estava contrariada com a reaparição daquele brinquedo que há muito tempo apenas enfeitava a janela do quarto de empregada.

- Pára, Luiz!

O menino continua em seu divertimento, indo e vindo...trrrrrrrrrrrrr, trrrrrrrrr, trrrrrrrrr...Talvez agora a brincadeira esteja um pouco menos monótona, apimentada pela irritação da mãe.

- Pára, Luiz, você não está me ouvindo!!!

A mãe agora perdeu o controle; dominada pela raiva. Quando o menino vem, se vira rapidamente na cadeira e mete-lhe um cascudo. O menino recua, o carrinho pára. Hesita entre o choro e o deboche, entre o orgulho de deslizar o carrinho novamente e o medo da reação da mãe.

O cascudo não acalmou a mãe, que agora tem mais um motivo de irritação, pois o menino desobediente a obriga a agir assim.

- Por que você não obedece! Só aprende quando apanha! Vai apanhar até aprender!

O pai, sentado à mesa na frente da mãe, que estivera calado até então, provoca:

- Se apanhar fosse educativo, a escola deveria utilizar esse método. Por que você não manda essa idéia pra escola dos meninos?

A esposa está irritada; novamente o marido, em vez de apoiá-la, a criticou na frente dos meninos:

- Eu ensino do jeito que eu sei, é assim que eu faço! – levanta-se, tira o carrinho do menino e devolve-o à janela do quarto de empregada.

O caçula de 3 anos, que estava sentado em sua cadeira, viu a cena. O cascudo, a ameaça, a crítica do marido e a breve discussão. São dados da vida que vai ter que organizar, e reorganizar, de algum modo, na sua cabeça.

(Texto de março de 2008)

VOZES, de Antonio Porchia

Antonio Porchia não é um escritor. É uma experiência. Uma experiência de abismo. Para compreendê-lo, é necessário mergulhar em sua vida e em suas vozes como se fossem uma coisa só. E esse mergulho tem de ser também um mergulho no profundo de si mesmo. De tal modo que autor e leitor tendam a ser o mesmo, no infinito, sem nunca chegar a sê-lo.

Tudo que Porchia escreveu são pequenas frases que chamou de vozes, e sobre seu livro falou: “Mi libro Voces es casi una biografía. Que es casi de todos”. As vozes são sempre as mesmas, mas o que elas dizem muda a cada leitura. “Lo que dicen las palabras, no dura. Duran las palabras. Porque las palabras son siempre las mismas y lo que dicen no es nunca lo mismo”.

O livro indicado é Voces Reunidas, da editora espanhola Pre-Textos, que inclui CD com as vozes faladas pelo autor. Quem se interessar em saber mais sobre Porchia e suas vozes pode visitar o excelente site www.antonioporchia.com.ar

Quis selecionar algumas vozes do livro, mas me senti retalhando um corpo vivo, cujos membros amputados morreriam. Mas toda obra de arte e toda vida não é isso, amputações do todo? Então percebi que também todas as vozes não eram o todo, mas apenas amputações, membros artisticamente retalhados do todo. O todo é o que milagrosamente renasce das vozes, invisível, inefável. Mesmo assim, o menor corte que consegui fazer ainda somam 29 vozes, que é muito. Bom, que a editora do Leiame faça seu dever, pois minhas mãos já estão sujas de sangue o suficiente.

Díos mío, casi no he creído nunca en ti, pero siempre te he amado.

No hallé como quien ser, en ninguno. Y me quedé, así: como ninguno.

Quien no llena su mundo de fantasmas, se queda solo.

Una cosa, hasta no ser toda, es ruido, y toda, es silencio.

No usar defectos, no significa no tenerlos.

Cuando el mal crece, el pequeño bien se agranda.
Sabes tanto de mi y no me comprendes. Saber no es comprender. Podríamos saberlo todo y no comprender nada.

Tu estás e crees que faltarías se no estuviese. Y la verdad es que tú no faltas. Ni el sol faltaría, si no estuviese.

Un alma santa no nace de un paraíso, nace de un infierno.

¿ Habría este buscar eterno se lo hallado existiese?

Ser alguien es ser alguien solo. Ser alguien es soledad.

El bien que hacemos a quien no le debemos bien, lo debemos a quien nos lo hace.

Nadie puede no ir más allá. Y mas allá hay un abismo.

A veces creo que el mal es todo y que el bien es sólo un bello deseo del mal.

Cuando más comprendo lo diferente, lo diferente es menos diferente. ¿Es que lo diferente es incomprensión?

Eres un fantoche, pero en las manos de lo infinito, que talvez son tus manos.

Puse una cruz de aire sobre los plomos. Y todo cambió. Los plomos se hicieron aire y la cruz plomo.

¿Por qué vuelves a la vida? Comprendo. Uno se cansa de todo. También de estar muerto.

Las pequeñeces son lo eterno, y lo demás, todo lo demás, lo breve, lo muy breve.

Si yo fuese como una roca y no como una nube, mi pensar, que es como el viento, me abandonaría.

Creías que destruir lo que separa era unir. Y has destruido lo que separa. Y has destruido todo. Porque no hay nada sin lo que separa.

El hombre, cuando es solamente lo que parece ser el hombre, casi no es nada.

Cuando lo superficial me cansa, me cansa tanto, que para descansar necesito de un abismo.

El hombre es una cosa que aprenden los niños. Una cosa de niños.

La humanidad no sabe ya adonde ir, porque nadie la espera; ni Dios.

Ya no sabes qué hacer, ni cuando te vuelves niño. Y es triste el ver un niño que ya no sabe qué hacer.

El hombre, cuando no es un autómata, no funciona bien.

Las alturas guían, pero en las alturas.

En lo superficial, si no eres superficial, necesitas que te lleve de la mano alguien superficial.

(Texto de fevereiro de 2008)

EXTRAVIADO

Alguém leu Bartleby?

É um conto de Herman Melville, autor dos excelentes Billy Budd e Moby Dick. O narrador é um advogado que se orgulha de ser prudente e organizado. Acha que a vida boa é a vida fácil, por isso não quer fama nem muita agitação, mas apenas um trabalho em que ganhe o suficiente com tranqüilidade. Ele organiza até as esquisitices dos seus dois copistas. Quando ele precisa de um terceiro, contrata um de aparência muito calma para contrabalançar as excentricidades dos outros. Só que esse terceiro é Bartleby, cuja apatia sempre aumenta, fugindo a qualquer tentativa de organização. Achei fantástico o jogo das tentativas do narrador de integrar o estranho Bartleby ao seu mundo, achar uma solução para uma situação que sempre escapa às suas investidas.

O que escrevi acima foi pensando no narrador. Afinal, é fácil se identificar com ele. Quem não está procurando organizar o mundo e achar uma maneira de ter um convívio agradável com os outros? Quem, como ele, não quer ficar em paz com a sua opinião a respeito de si e também com a opinião dos outros, embora muitas vezes seja difícil conciliar as duas coisas?

Mas de repente comecei a pensar em Bartleby. Imaginei que o personagem se apossasse do meu corpo. No começo foi divertido. Imaginei-me comprando um biombo e construindo um eremitério em volta da minha mesa de trabalho, de modo que ninguém visse o que estou fazendo. Imaginei o chefe me passando um serviço e eu respondendo calmamente: "eu preferia não fazer isso". Até aí foi engraçado.

Depois imaginei todos indo embora do trabalho e eu ficando no meu eremitério. A cidade vazia. O silêncio. As luzes são apagadas. O segurança da ronda noturna assustado vê que estou no trabalho e diz: "você tem que ir embora". Respondo simplesmente: "preferia ficar aqui". Ele não sabe o que fazer e sai para informar algum superior.

Na minha casa a minha esposa já está desesperada. O telefone tocou diversas vezes, mas não atendo. Estou ausente. No dia seguinte, avisam em casa que fiquei no trabalho. Vem esposa, traz os meus filhos que choram. Querem saber o que aconteceu. Não explico: "prefiro ficar aqui". Logo a família fica mobilizada: vem irmão, mãe e todos sem saber o que fazer comigo.

Que agonia!! A minha, ao imaginar-me em tal situação, não de Bartleby, que estaria completamente indiferente a tudo e a todos: "eu preferia ficar aqui". Levam-me, sem resistência de minha parte, para um hospício, onde fico o dia inteiro olhando para uma parede, sem comer nada. Neste ponto entendi a expressão que o narrador usou de homem extraviado. É como se Bartebly tivesse soltado todos os fios invisíveis que nos une aos outros e à nossa própria individualidade. Por isso ele é incapaz de maldade, mas também de qualquer outro sentimento. Ele está ausente, extraviado.

(Texto de novembro de 2007)

ERA UMA VEZ...

E Deus disse: big bang. Não, e Deus disse: Era uma vez... Porque Deus é um contador de histórias. Ele conduz e é conduzido pela trama que conta, e não escolhe exatamente o que irá acontecer. Mas quem pode negar seu amor por cada estrela, cada planeta, cada personagem, humilde ou poderoso, engraçado ou desgraçado, cômico ou trágico, que sai da sua boca divina.

De certo que o homem pensa, e seu pensar, para o bem ou para o mal, influencia o seu agir. Mas como imaginar que Deus é pensamento, como uma grande cabeça que resolveu projetar o universo e comanda premeditadamente tudo que aqui acontece. O pensamento veio depois, e já é uma outra história, ou é nota de rodapé.

E é contando e ouvindo histórias que o homem se reconhece. A história do universo, do mundo, da terra, dos homens, do seu país, e até da sua própria família não lhe pertence. Outro conta melhor; e lhe cabe apenas, como as crianças na roda em volta do contador, se admirar, e rir, e chorar, e esperar, e recontar. Mas nesse jogo começa a olhar também para a sua história com amor, como algo que não pode controlar inteiramente, também aqui outro conta melhor. Reconhece, porém, que a sua é a única história que pode compartilhar na criação. E percebe que estar perto de Deus não é pensar, não é controlar tudo, não é achar a solução para o mundo ou para si, mas aceitar e amar tudo como é. Receber o presente, com alegria ou tristeza, amor ou ódio, conforme o que vier, e deixar passar e passar; e fazer o bem que conseguir (por amor à beleza? a Deus? ao amor? à vida?) na aventura da sua vida.

Se hoje não podemos mais, em volta da fogueira, ouvir belas narrativas, podemos “ouvi-las” nos livros e sentir o mesmo deslumbramento que une os homens de todas as épocas da história e de todas as partes do mundo. Convido os meus poucos leitores para nos reunirmos com a humanidade em volta da fogueira da internet, e “ouvirmos” os dois primeiros contos do livro “Os grandes contos populares do mundo”, organizado por Flávio Moreira da Costa. Como não nos reconhecer nesses dois contos populares: "A cabana de luzes", do Afeganistão, e "O guerreiro Juliano", da Alemanha. Como não reconhecer neles a desgraça da prepotência do pensamento, a pobre prepotência do homem, que nega o mundo em favor de seus preconceitos e de sua má filosofia, que perde a vida esperando uma outra vida. Como não nos compadecermos e, como Xariar, quem sabe ouvindo histórias também não aprendemos algo de divino. É certo que Xariar, para sair de seu egoísmo, precisou da beleza, do talento, e do amor de Sherazade. Mas nós não fomos tão mimados quanto um Rei; ou fomos?

“APODERA-TE NOVAMENTE DE TI MESMO” (Sêneca)

Minha prima Coca, que me levou à Mauá quando eu tinha 10 anos, em 1977. Marcos, colega de Receita Federal que trabalha em Recife, que conheci em Brasília no treinamento para o cargo de Técnico de Finanças e Controle realizado na Esaf em 1993. Cezar, namorado da minha cunhada, que conheci no carnaval de 1995 em Arraial do Cabo. O que há em comum entre eles, além de mim, é que no primeiro fim de semana de setembro de 2007 todos foram atraídos à cidade de Belo Horizonte, onde moro. Cezar veio fazer provas para concursos na área de Direito; Marcos veio finalmente defender sua monografia de encerramento de um curso à distância de pós-graduação em Direito Urbanístico; e Coca veio a um congresso de Urbanismo em Ouro Preto e aproveitou para passar o fim de semana em Belo Horizonte e conhecer Inhotim. Cezar e Coca ficaram hospedados na minha casa, de onde escapuli no sábado à tarde para encontrar Marcos e Carlos em uma mesa de Bar. Conheci Carlos, que trabalha neste mesmo prédio na Av. Afonso Pena, na faculdade de Engenharia no Rio de Janeiro em 1985, calouro como eu. Marcos, Carlos e eu, três em volta da mesa, todos os três curiosamente vestiam camisas verdes.

O que isso significa? Nada. Apenas que a vida mais comum é simplesmente imprevisível e fascinante. Precisamos apenas ficar atentos e abertos para sair da senda cotidiana. Uma semana antes de prima e amigos virem a Belo Horizonte e trazerem meu passado em meio a jardins de Burle Marx, camisas verdes, provas de concurso e lembranças de Mauá, fui à comemoração dos 50 anos de Receita Federal do Heryberto, promovida pelos colegas sob a batuta do Serginho, que promete transformar a Delegacia Sindical de Belo Horizonte do Unafisco Sindical num ponto de encontro, com homenagens mensais para os aniversariantes (Sergio, mantenha a simplicidade do encontro na lanchonete do 10º andar depois do expediente!). O ponto alto foram os discursos espontâneos do Serginho e dos familiares do Heryberto. Depois fiquei por ali, tomando caldinho de feijão e cerveja na companhia dos que se permitem ficar sem mais porquê. Entre esses colegas estava o Mauro, que ainda esticou a noite para ir ao lançamento do CD do Chico Amaral no Museu de Artes e Ofícios. Um ou dois dias depois, a caminho do almoço, encontrei o Mauro em frente à saída Goiás; um impulso para parar; mas preso à minha correria maquinal apenas cumprimentei e segui em direção ao nada a quilo, onde temperei o prato com a sensação amarga de que deixara pra trás um agradável almoço no Mercado Central acompanhado de saborosa conversa sobre os issos e aquilos da vida.

Estou lendo 29 cartas de Sêneca ao amigo Lucílio, reunidas pela Editora Martins Fontes sob o título “Aprendendo a Viver”. O livro é muitas vezes uma reflexão sobre a morte, mas o título é adequado, pois Sêneca acredita que apenas enfrentando a escuridão tenebrosa e encarando o medo da morte e das perdas realmente aprendemos as lições que podem nos colocar no caminho plano da vida feliz. E essas lições são espantosamente próximas ao Budismo: desapego, naturalidade, consciência de que tudo muda, concentração no tempo presente, fazer o bem, não temer a pobreza, evitar a ambição e a ignorância. Mas quem pode levar a sério essas lições sem antes aceitar a vida sem máscaras, com a morte, que é o fim certo a que chega toda vida? Esqueça Lucílio, o livro reúne cartas de Sêneca destinadas a mim, ao Cezar, à Coca, ao Mauro, ao Serginho, a cada homem que se encontra em dificuldades diante da vida.

Terminei de ler o fantástico Os filhos da meia-noite. Felizmente escrevi sobre ele neste espaço quando tinha lido apenas os dois primeiros capítulos. Senão, como escrever um pouco de um livro que envolve o mundo todo em sua saga familiar? Mas, se estamos a dar conselhos, é um livro para resgatar ou realçar aquele encantamento (lembra quando você era menino ou menina?) com a vida de cada um, por mais comum e miserável que seja. Quem não é capaz de ouvir a voz que sai desse livro? Às vezes temos a impressão de que, se encostarmos sua capa ao nosso ouvido por tempo suficiente, ouviremos ecos de todas as vidas, e saberemos.

(Texto de setembro de 2007)

O Mundo em uma Frase, de James Geary

Aforismos são remédios para a mente. Os remédios para o corpo não curam diretamente, mas por meio de mudanças que provocam no corpo. Também os aforismos não curam diretamente, mas por meio de mudanças que provocam na mente. Como os remédios comuns, que só são administrados quando há uma doença, também os aforismos só operam e têm sentido diante de um sofrimento causado pela mente. Em relação aos remédios comuns, pode-se esperar algum efeito mesmo sem participação da mente, pois eles provocam biologicamente o movimento do corpo. Já os aforismos, como pretendem provocar o movimento da mente, são inócuos sem a reflexão de cada um. Talvez por isso o aforista Joseph Joubert tenha escrito: “Compreender um pensamento e produzir um pensamento é quase a mesma coisa.”

A primeira dificuldade é perceber que a mente e os pensamentos causam sofrimentos para si; não apenas para os outros por meio das ações. A forma natural de raciocinar tende a enxergar fora de nós a causa exclusiva de nossas dores. Talvez não seja assim. “O seu pior inimigo não pode prejudicá-lo tanto quanto os seus próprios pensamentos, imprudentes. Mas uma vez dominados, ninguém pode ajudá-lo tanto.”, disse Buda. “O que perturba as pessoas não são as coisas em si, mas as suas opiniões sobre as coisas”, disse Epicteto.

Ainda que eu possa reconhecer que meu sofrimento é causado pela minha mente, parece não estar em meu poder movê-la na direção certa. Talvez realmente não esteja, mas só posso saber se tentar. Se localizo meu sofrimento apenas no exterior e culpo o que está fora de mim, é quase impossível que a mente se mova. Se entendo que a minha mente é a maior responsável pelo meu sofrimento, talvez, apesar de todas as dificuldades, minha mente se mova, o sofrimento diminua e minha ação seja boa. Deus diz ao pobre Caim dominado pelo ódio causado por sua mente: “tu podes dominá-lo”.

O aforismo é breve porque é apenas o pontapé inicial de um diálogo que cada um deve ter consigo na solidão. Como o aforismo também só tem sentido diante de algum problema, é um bom sinal que possamos tranqüilamente largar nossos aforismos, pois conseguimos ser o que eles tentam nos ensinar. Mas a vida nunca pára, e é bom carregar na lembrança um armário de aforismos, como quem tem no banheiro um armário de remédios; só que os aforismos não têm prazo de validade.

O livro indicado é “O mundo em uma frase”, de James Geary, que reúne aforistas e seus aforismos, contando uma breve e saborosa história do gênero e de seus mais inspirados mestres.

Alguns aforismos retirados do livro “O mundo em uma frase” (sugiro que se leia com calma e muito tempo, explorando intimamente todas as facetas de cada aforismo antes de passar ao próximo):

Verdades são ilusões de que se esqueceu que são ilusões.
(Nietzsche)

O prazer é o início e o fim da vida bem-aventurada.
(Epicuro)

Quando faltamos a nós mesmos, tudo nos falta.
(Goethe)

Nada basta quando o bastante não basta.
(Epicuro)

Não considere valioso algo que possa ser subtraído.
(Sêneca)

Tudo que pode acontecer a qualquer momento, pode acontecer hoje.
(Sêneca)

A perda de algo nos afeta até que o tenhamos perdido completamente.
(Porchia)

Quem viu tudo esvaziar-se está próximo de saber do que tudo está cheio.
(Porchia)

Se as portas da percepção fossem lavadas, tudo apareceria ao homem como é, infinito.
(Blake)

A arte serve para enxaguar os nossos olhos.
(Kraus)

A viagem de mil léguas começou com o que estava sob os pés.
(Lao Tse)

Governar um reino grande é como cozinhar um peixe pequeno; quanto menos mexer, melhor.
(Lao Tse)

Deus, concedei-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as coisas que posso mudar, e sabedoria para reconhecer a diferença.
(Prece da Serenidade)

Quando nosso corpo e mente estão em ordem, tudo o mais está no seu devido lugar, de forma certa.
(Shunryu Suzuki)

Simplesmente aperfeiçoe a si mesmo; é a única coisa que você pode fazer para melhorar o mundo.
(Wittgenstein)

DEGUSTAÇÃO NO GOOGLE BOOKS!!!

(Texto de agosto de 2007)

IDÉIAS

Livros & Idéias. Os bons observadores devem se recordar que este espaço se chamava “Eu recomendo”. Acontece que no mês passado mandei um artigo em que não recomendava nenhum livro. Foi preciso então mudar o nome da seção. E essa é a primeira vez que me encontro diante do desafio de escrever alguma coisa que caiba em Livros & Idéias. Talvez seja uma boa idéia esclarecer um pouco esta palavra: idéia.

Idéia ou pensamento é o que nos diferencia dos outros animais, é a habilidade que se mostrou tão eficiente para a nossa sobrevivência, que pudemos lentamente abdicar de outras armas, como garras, pele grossa, dentes afiados, rabo, força e agilidade. Assim como não é próprio do olho olhar a si mesmo, não é comum a idéia tomar a si mesma como objeto. Por isso, não é de se estranhar que no século XVIII, quando David Hume empreendeu sua investigação sobre o entendimento humano, não encontrou no vocabulário inglês expressões que dividissem em dois grupos distintos o que percebeu como sendo duas espécies de percepções da mente. Usou então a palavra impressões para designar as percepções mais vívidas da mente no presente, que experimentamos sempre que vemos ou ouvimos algo, ou quando sentimos dor, ou ódio, ou fome, ou amor. E manteve a palavra idéia ou pensamento em seu sentido usual, para designar as percepções menos vívidas que são representações mentais conscientes da dor, do ódio, da fome, do futuro, do passado, de algo concreto ou fictício.

Mesmo as idéias mais atraentes e boas não passam de hipóteses, conjecturas, ficções. O primeiro homem que se tem notícia que teve a idéia de que o homem não pode ter certeza de quase nada, mas apenas procurar se aproximar da verdade através de hipóteses e da descoberta de erros foi Xenófanes, um rapsodo que viveu na Grécia antiga no século VI a.C. Como rapsodo, vivia de declamar Homero e Hesíodo. Depois passou a compor seus próprios poemas, e, de acordo com um dos fragmentos que sobreviveram, passou 67 anos fazendo vagar seu pensamento pela terra da Hélade. Reproduzo os fragmentos mais significativos para entender o que Xenófanes pensava a respeito das idéias:

Verdade segura jamais homem algum conhecerá
Sobre os deuses e todas as coisas de que falo.
Se alguém alguma vez proclamasse a mais perfeita verdade
Não o poderia saber: está tudo entretecido de conjectura.
(...)
Os deuses não revelaram tudo aos mortais desde o início.
Mas no correr do tempo encontramos, procurando, o melhor.
(...)
Essa conjectura é, assim parece, bem semelhante à verdade.
O próximo herdeiro dessas idéias, que exortam à humildade intelectual, contra a presunção e o fanatismo, viveu em Atenas no século V a.C. Sócrates, em praça pública e desarmado, prevenia os homens de seu tempo contra a vaidade de saber pretensamente coisas demais. Para ele, o saber não é uma terra que se conquista e se defende do ataque dos outros com espadas, títulos ou dinheiro, mas um caminho na direção da verdade que apenas se faz tendo a grandeza de admitir a própria ignorância e procurando erros. Assim, quem tem outras idéias não deve ser atacado violentamente, mas encorajado, pois só se podem melhorar as idéias por meio da crítica. Sua maior sabedoria estava na idéia de ignorância: “Sei que não sei quase nada, e mal sei isso”. E, condenado à morte, teria feito um último pedido aos amigos: “punam meus filhos quando eles crescerem, senhores, perturbando-os como eu perturbei vocês; caso lhes pareça que eles se preocupem menos com a virtude do que com dinheiro ou outra coisa qualquer e pensam ser mais do que são, repreendam-nos como eu repreendi vocês por se preocuparem com o que não deveriam e acharem que significam alguma coisa quando não valem nada”.

Talvez o fanatismo que leva alguém a matar por uma idéia tenha a mesma origem de qualquer ódio cotidiano contra pessoas que mal se conhece. Quem odeia acredita piamente que sabe tudo sobre a pessoa odiada, mas na realidade quase tudo que sabe são conjecturas a partir de uma visão muito parcial. Por sua implicação universal, os defensores da idéia de tolerância, de modéstia, da falibilidade das idéias, falam claramente a todos. Para uma visão mais aprofundada e ampla do assunto, recomendo a coletânea de palestras de Karl Popper, reunidas no livro Em busca de um mundo melhor, da editora Martins Fontes. Comecei falando de idéias, e terminei indicando um livro. Parece que assim vai. E críticas são bem vindas no meu e-mail.

(Texto de julho de 2007)

TRAVESSIA

Jornada. Aventura. Travessia. Fico com travessia, em homenagem a João Guimarães Rosa. Pois bem, há uma travessia fundamental que cada um pode empreender. Ela nos leva de uma margem seca, devastada, triste e sem cor a outra margem, que de tão rica em árvores, frutas e cores, pode ser chamada de shangrilá, paraíso, iluminação ou jardim do éden.

Assim como a travessia, o barco e os ajudantes para fazê-la serão sempre os escolhidos de cada um. Acredito que muitos percorrem essas águas sem sequer sabê-lo. Mas como aqui se espera a indicação de livros, recomendo dois que falam dessa jornada: Em Busca de um Mundo Melhor, de Karl Popper, e O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell.

O importante é entender que essa travessia é espiritual, o que não a torna menos real. O aventureiro faz ou encontra seu barco e percorre o caminho da margem devastada para a margem fértil. Quando olha pra trás, em direção à margem de onde partiu, vê que ela é exatamente igual ao lugar em que chegou; é o mesmo lugar. Então percebe que sempre esteve no paraíso, mas nunca tinha enxergado.

Pronto, dirão vocês: o Roberto endoidou, pirou de vez. Será que ele está dizendo que esse mundo cruel, desumano, breve e injusto onde todos nós vivemos é o paraíso? Realmente estou, e convido os mais afoitos a ler com atenção os livros indicados para ver que não falo de uma jornada de ilusão, mas de um caminho sóbrio de busca da verdade. Também posso recomendar aqui, para ficar apenas nos textos que primeiramente me vêm à memória, os contos A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, e Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago. Mas cada um deve encontrar livremente os seus barcos, que não precisam ser necessariamente de papel.

A gente parte de um ponto e mira outro; mas a realidade, o paraíso e o inferno acontecem mesmo na travessia, não na sonhada margem de chegada. Isso nos ensina Riobaldo, aprendiz e mestre de travessias, em Grande Sertão: Veredas. Aliás, a crença no paraíso como um lugar a que se chega e se fica, no caminho como mero meio para se chegar a um fim, na verdade como algo que se alcança com certeza - em oposição às noções de busca e incerteza - parece estar mais ligada à visão do inferno.

(Texto de abril de 2007)

OS FILHOS DA MEIA-NOITE, de Salman Rushdie

Nos últimos quatro anos reservei um tempo sagrado no meu dia para a leitura. Desde então leio sem parar. Compro mais livros do que consigo ler, e faço anotações de livros e autores que quero ler. Mas Salman Rushdie nunca esteve na minha estante nem nas minhas listas. Até que li alguém recomendando “Haroun e o Mar de Histórias”. O livro pequeno, destinado ao público juvenil, me pareceu uma boa porta para entrar no universo do escritor angloindiano. Acontece que minha livraria virtual oferecia como aperitivo o primeiro capítulo – “O lençol furado” – do premiado “Os Filhos da Meia-Noite”. Baixei no computador e resolvi conferir.

O narrador, Salim Sinai, informa que nasceu em Bombaim à meia-noite do dia 15 de outubro de 1947, no momento exato em que a Índia se tornou independente. Esse fato de maneira misteriosa acorrentou indissoluvelmente o seu destino à história do país. Salim Sinai tem sido um “engolidor de vidas”, e para entendê-lo o leitor terá de ouvir todas as histórias que tem dentro de si. Com 31 anos e o corpo desgastado, não podendo contar com 1001 noites e sem esperanças de se salvar, ele precisa trabalhar depressa, mais depressa que Sherazade. Seu objetivo é contar alguma coisa que faça sentido. Pois, admite, acima de tudo tem medo do absurdo.

Guiado por um lençol branco com um buraco no meio de mais ou menos 17 cm de diâmetro, seu talismã, seu abre-te-sésamo, Salim inicia sua viagem narrativa. Estamos na Caxemira, 37 anos antes de seu nascimento, junto a seu avô Aadam Azis, que aos 25 anos retorna médico depois de 5 anos de estudo na Alemanha. Aadam bate o volumoso nariz num montículo de terra endurecida pela neve enquanto tentava rezar. Naquele momento de dor, “ele decidiu que nunca mais voltaria a beijar a terra por nenhum deus ou homem. Essa resolução, entretanto, criou um buraco dentro dele, um vazio numa câmara vital interna, deixando-o vulnerável às mulheres e à história”. Em seguida, um fazendeiro viúvo o chama para examinar sua filha. O casarão é mal cuidado e escuro, o fazendeiro é cego e quem os guia é uma mulher musculosa. Finalmente entra no quarto da paciente e vê apenas um enorme lençol branco, como uma cortina, segurado nas pontas por outras duas mulheres com porte de lutadoras. Seu anfitrião avisa que a filha está do outro lado do lençol, de modo que só será permitido ao médico ver através do buraco o necessário para cuidar de sua doença. Espantado, Aadam pergunta de que ela se queixa. O fazendeiro diz que a pobrezinha sente muita dor no estômago. O médico, então, pede que a paciente lhe mostre o estômago.

O primeiro capítulo acabou e eu estava enfeitiçado como uma criança; queria saber o que vinha depois. Assim que pude fui a uma livraria, achei “Os Filhos da Meia-Noite” na estante e comecei a ler o segundo capítulo – “Mercurocromo”. Salim Sinai conta como as dores da filha do fazendeiro se seguiam, cada vez em um lugar diferente. Como seu avô foi ficando apaixonado pela sua paciente. “Assim, aos poucos, o Dr. Aziz veio a formar uma imagem mental de Nasim, uma colagem desconjuntada das partes inspecionadas aos pedaços. Esse espectro de uma mulher seccionada começou a persegui-lo, e não apenas em sonhos. A imaginação do médico colava os fragmentos, e a moça o acompanhava por toda a parte, passando a morar na sala de estar de sua mente, de modo que, acordado ou dormindo, sentia na ponta dos dedos a maciez de sua pele coceguenta, ou os minúsculos pulsos perfeitos, ou ainda a beleza dos tornozelos; sentia o perfume de lavanda e chambeli; escutava-lhe a voz e o riso de garotinha; no entanto, ela não tinha cabeça, pois o médico nunca lhe vira o rosto”.

Não precisei ler mais nada, comprei o grosso volume de 600 páginas e tenho-o aqui comigo. Imagino que ali dentro repousam mil saborosas e fantásticas histórias. Quero ler esse livro bem lentamente, saboreando e sonhando com cada história revelada através do buraco circular de cada um de seus 30 capítulos. Quem sabe consiga, além da beleza das partes, vislumbrar algum sentido. Pois confesso: eu também tenho medo do absurdo.

Explore o conteúdo no site da Livraria Cultura!!!

(Texto de março de 2007)

TRIÂNGULO AMOROSO

Nunca consegui ler vários livros ao mesmo tempo. Geralmente, quando estou lendo um livro, só tenho ele na minha frente. Às vezes acontece de outro aparecer e me pegar de jeito, aí abandono o primeiro. Mas, por acaso, comecei a ler Zorba, o Grego, de Nikos Kazantzakis, e Mente Zen, Mente de Principiante, de Shunryo Suzuki, e eles se entenderam tão bem entre si e comigo que formamos um harmonioso triângulo amoroso.

Em Zorba, o Grego, um escritor de meia idade sente-se miserável por sua vida ter ficado presa nas palavras, entre ideais, livros, abstrações, religiões e sonhos. A luz de seu espírito vacila porque lhe falta carne, como uma vela com pouca cera ou uma fogueira com pouca lenha. Para livrar-se das papeladas e atirar-se à ação, aluga uma mina de linhita e parte para Creta. Já no porto, Zorba o encontra e pede que o leve junto como seu empregado. A partir daí o livro se transforma em Zorba, se rende a Zorba, um homem de 65 anos que só leu um livro (Simbad, o Marujo) e que vive intensamente cada momento de maneira natural, como uma criança experiente. Tudo nele cheira a liberdade – as aventuras do passado, as do presente, o eterno assunto mulher, o trabalho, a comida, a religião, a música, a dança. Nada nele fica parado remoendo. Pergunto-me se é possível alguém ler esse livro e não se render a Zorba.

Mente Zen, Mente de Principiante é uma coletânea das pequenas palestras que o mestre Zen japonês Shunryo Suzuki proferia depois da prática de meditação Zen. Esse livro dialoga muito bem com Zorba, o Grego, pois Zorba é o exemplo vivo de sua doutrina. De quem o mestre Zen poderia estar falando a não ser Zorba quando ensina que devemos deixar de lado todas as idéias preconcebidas para viver o momento. Claro que temos idéias, fantasias, lembramos do passado e planejamos o futuro (tudo isso faz parte de nossa natureza humana), mas temos também que saber deixar tudo isso de lado se quisermos aceitar as coisas como são e receber o presente com naturalidade, liberdade e criatividade.

Os dois, Zorba e o mestre Zen, estão falando a mesma coisa: Criar um ideal profundo e elevado e depois tentar atingi-lo é um engano. Esse ideal pode ser o budismo, o cristianismo, o socialismo, a riqueza, o sucesso, o amor. Eles são belos frutos de nossa imaginação, devemos comê-los e transformá-los em alegria. Cristalizá-los e vê-los como algo sublime que realmente está em algum lugar fora de nós é um engano que transforma a vida, aqui e agora, em martírio. Suzuki diz que “não devemos nos deixar aprisionar por uma parede construída por nós mesmos”. Zorba diz a mesma coisa por meio de um sonho que conta ao narrador:

Tive um sonho. Um sonho gozado. Acho que não tarda muito vou fazer uma viagem: Ouça, você vai rir. Tinha aqui no porto um navio grande como uma cidade. Apitava, pronto para partir. E eu vinha correndo da aldeia para embarcar nele trazendo na mão um papagaio. Chego, subo no navio, mas vem o capitão e grita: “A passagem!” “Quanto custa?”, pergunto, tirando do bolso um punhado de notas. “Mil dracmas.” “Olhe aqui, por favor, não pode deixar por oitocentas?”, perguntei. “Não, mil.” “Eu tenho oitocentas, tome.” “Mil, nenhum centavo a menos. Senão, vá dando o fora depressa!” Então eu me queimei: “Olhe, capitão, no seu próprio interesse, pegue as oitocentas que estou te dando, senão eu acordo, meu pobre velho, e você perde tudo!”
(Texto de fevereiro de 2007)

PLANO DE ATAQUE, de Ivan Sant'Anna

O que aconteceu em 11 de setembro de 2001? Entre milhões de outras coisas, todo o mundo viu que quatro aviões comerciais foram tomados por terroristas e atirados contra alvos americanos. Um atingiu o Pentágono, um caiu sobre o campo nas proximidades de Washington, e dois atingiram o World Trade Center, as Torres Gêmeas que desabaram sob a ação do fogo. Quase ao mesmo tempo as imagens, informações, ilusões e opiniões sobre os acontecimentos se espalharam pela Terra, num nítido retrato do mundo globalizado em que vivemos.

O que poucos souberam é que nesse dia e nos seguintes um escritor brasileiro não tirou os olhos da televisão e do computador, procurando saber tudo que se dizia sobre os ataques. Quando a televisão começou a se esquecer do assunto, sua vida se transformou nos próximos cinco anos em uma busca cuidadosa pelas informações precisas sobre o atentado e seus antecedentes, de modo que a grande trama do destino tecida naquele dia pudesse ser revirada e vista em sua grandiosidade. O resultado dessa busca é o livro Plano de Ataque, em que Ivan Sant’Anna permite ao leitor ver o que está por trás das imagens que marcaram aquele dia. E o que está por trás são histórias de homens e mulheres que tragicamente foram unidas pelo destino no dia 11 de setembro de 2001.

São as histórias dos terroristas e mais detalhadamente dos quatro pilotos suicidas. São histórias de passageiros dos aviões e suas famílias, de pessoas que ficaram presas nas torres gêmeas, de bombeiros que trabalharam no resgate dessas pessoas até que os prédios caíssem sobre suas cabeças. E o livro é irresistível, pois, ao contrário desse resumo, não fala nada de forma geral, mas nomeia e individualiza cada personagem, que consegue unir em uma brilhante reconstrução da história. O mérito de Ivan Sant’Anna é manter-se distante do julgamento moral e simplesmente nos colocar em íntimo contato com homens e mulheres que foram os principais fios construtores da trama. Poderíamos até encerrar o livro com as palavras do coro ao fim da tragédia Medéia, de Eurípides: “Do alto de seu trono olímpico, Zeus tece o fio dos fatos e dos destinos, trama que quase sempre ultrapassa a compreensão dos mortais. O esperado não se realiza, o imprevisível encontra seu caminho. E assim termina o drama.”

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(Texto de janeiro de 2007)


UM LIVRO SOBRE LIVROS

A alemãzinha bonitinha da foto da orelha é um colosso. O título de seu livro – Livros, tudo o que você não pode deixar de ler – é um apelo comercial, típico de tantos produtos quase inúteis que precisam encontrar milhares de compradores apressados. O prefácio de Dietrich Schwanitz e o último capítulo sobre Machado de Assis, assinado por João Adolfo Hansen, são aqueles textos acadêmicos sobre literatura que enfastiam quase todos os leitores. Mas o livro de Christiane Zschirnt não é uma coisa nem outra; é um saboroso retrato cubista do mundo feito por meio de livros.

É um livro sobre livros fundamentais na formação da famigerada e pouco conhecida cultura ocidental, divididos não em ordem cronológica, mas em temas como amor, política, sexo, economia, mulheres, civilização, psique, utopia. É claro que para viver no mundo de hoje não é preciso ler, mas parece difícil chegar a algo próximo de entendê-lo sem a leitura. Você pode ser extremamente bem ou mal adaptado à civilização sem ler os diversos livros presentes no capítulo civilização. Mas lendo as resenhas dos livros juntados sob este tema você percebe que já entende um pouco mais do que isso, a civilização, quer dizer, e que ela lhe é muito mais íntima do que você imaginava. E se você efetivamente ler esses livros, ou mesmo outros com o olhar atento a este tema, desfrutará de uma experiência muito mais profunda. Claro que, depois dessa odisséia, vai continuar tão bem ou mal adaptado à civilização quanto antes; porém, agora finalmente você foi apresentado a alguém que durante toda a sua vida sempre esteve, e estará, presente, para o bem e para o mal.

É um livro de descobertas, em relação a todos os temas. Também é um grande retrato, ainda possível de se entender, deste vasto mundo em que nós vivemos, e que de certo modo vive em nós. Sabemos que é um retrato feito de colagens, e que cada pequeno pedaço não mostra tudo, mas ainda assim é um retrato. Ao todo, a autora nos apresenta ou reapresenta cerca de 100 livros. O melhor é que ela aproxima os livros do leitor comum, mostrando que falam dele e de seus prazeres e problemas rotineiros livros como Odisséia, O Capital, Da liberdade, Anna Kariênina, Hamlet, A Bíblia, Interpretação dos Sonhos, Orgulho e Preconceito, Admirável Mundo Novo, O Processo Civilizador, Esperanto Godot, Romeu e Julieta, O Vermelho e o Negro, Mrs. Dalloway, A Democracia na América, Em Busca do Tempo Perdido e tantos outros. Pena que o capítulo especial sobre livros brasileiros não foi encomendado à Ana Maria Machado.

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(Texto de novembro de 2006)


LEITURA

O mais importante não é abrir um livro, mas abrir-se ao livro. Suspenda as certezas, leia vagarosamente. Deixe cada frase levá-lo pelo espaço infinito das entrelinhas. Não leia para conhecer, para isso serviriam os resumos. Leia para ser levado além de um modo pessoal, onde nenhum resumo ou suposto “significado” de uma obra pode levá-lo. As entrelinhas de um grande livro são do leitor, e o escritor nem sequer poderia imaginá-las. Está ali toda a sua vida: os outros livros que você leu, sua experiência, seus sentimentos, seus conhecimentos, tudo dialogando, tudo em movimento. A cada grande livro lido com intensidade você cresce e muda, sua visão do mundo e de você se expande. Por isso, ler apenas um livro pode muitas vezes ser divertido e emocionante, mas lê-lo alguns anos depois, quando entrará na leitura suas novas experiências e os outros livros que você leu, será muito diferente: parece que aquele livro cresceu.

Não vou indicar um livro. Recomendo a leitura diversificada e paciente. Leia grandes livros de literatura, mas não deixe de ler também grandes livros de história, de idéias (e aí incluo filosofia, psicologia e outras ramificações que só são importantes para os especialistas). Ache seus grandes livros, mas não deixe de ler, de vez em quando, alguns dos considerados grandes. Acredite, eles realmente são grandes, e são fundamentais. Alguns talvez precisem de um pouco de leitura sobre o autor e a época em que foi escrito, um pouco de informação para entrar nele; uma vez lá dentro, você não estará lendo mais sobre o escritor e sua época, mas sobre a nossa época e sobre os seus, caro leitor, sentimentos e assombros mais íntimos.

A idéia é crescermos em direção ao tamanho dos livros, não reduzirmos os livros ao nosso tamanho. Outro dia, em uma livraria, peguei na mão Da brevidade da vida, de Sêneca. O título me remeteu logo para todos os sentimentos de frustração diante das minhas mortes diárias a cada escolha e da minha morte final: “a impossibilidade de todas as possibilidades”. No entanto, o que li nas primeiras páginas foi algo totalmente diferente (por falta de espaço, para saber o que li você vai ter que comprar o livro, R$ 6,00 pela LP&M, ou filar numa livraria). Por isso, insisto que se leia com espírito igualmente aberto os opostos, pois a verdade não está em nenhum lugar, parada dentro de um livro esperando para ser conhecida, mas viva e espalhada por todo lado. Leia Rousseau e John Stuart Mill, leia Descartes e Fernando Pessoa, leia Sófocles e Aristófanes, leia drama e comédia, os livros benditos e os malditos, os sagrados e os profanos, os transcendentais e os sensuais.

(Texto de outubro de 2006)

UMA BREVE HISTÓRIA DO HOMEM

Que tal uma fascinante viagem pelos cinco continentes da Terra, acompanhando a aventura humana em mais de 10.000 anos de história. Em 336 páginas o livro Uma breve história do homem, de Michael Cook, Jorge Zahar Editor, leva você a essa viagem. Ainda que muito seja perdido nesse passeio, brilhantemente resta o homem, e sua enorme capacidade para arbitrariamente criar culturas diferentes, nelas viver e com base nelas construir. Restam as histórias e a história, vivas, não mais retalhadas para poder caber em determinada moldura ideológica, religiosa ou sistemática. Para enriquecer esse cenário, e estimular a reflexão sobre ele, eu recomendo que se leia o livro Humano, demasiado humano, de Friedrich Nietzsche, em ótima edição pela Companhia das Letras (Companhia de Bolso).

Talvez ao terminar de ler esses livros você sinta que a própria história da humanidade o atravessa, e que o que você sempre acreditou naturalmente ser, não é mais que a forma como a história chegou até você e em você se manifestou. Você pode lembrar de Édipo, rei de Tebas, que inocentemente se lançou na empreitada de descobrir o assassino do seu antecessor Laio, sem saber o destino trágico dessa busca pela verdade. Quando você antevir que essa busca pode fazer ruir todas as bases sobre as quais você construiu seu reino, talvez seja tarde demais para recuar.

Pronto, aí está você, no centro dos conflitos do homem de hoje, nascido em um momento em que todos os homens de todas as culturas se misturam e convivem, de tal modo que nenhuma pode contar ao menos com o relativo isolamento que a sustenta. Talvez a dor da orfandade recente o leve a se isolar em um dos milhares de grupos que se fecham em torno de uma crença comum. Você está entre a relativa esterilidade da ciência e a perigosa potência da fé. Você está entre o progresso e a revolução. Entre o homem e o bom selvagem. Entre a terra e o céu. E talvez - ou será apenas um desejo? - já tenha passado o tempo das opções radicais.

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(Texto de agosto de 2006)

O que passou deve passar

Entre as postagens atuais, vinha publicando aqui as crônicas que escrevi a partir de junho de 2006. Para que o blog a partir de amanhã comece a receber textos atuais, hoje vou desovar todas as crônicas que ainda não foram publicadas, na ordem em que foram feitas.

quinta-feira, 18 de março de 2010

LIVROS, LIVROS

Chão em chamas e Pedro Páramo – Recentemente recomendei Pedro Páramo, o romance de Juan Rulfo. Mas depois li seus contos de Chão em Chamas, que são verdadeiras preciosidades. Juan Rulfo une com perfeição a beleza da descrição do cenário árido do México com a narrativa das histórias de seus personagens. Cada conto é uma obra-prima, que temos vontade de ler, reler, reler...

Sagarana e Grande Sertão: Veredas – O estilo de Guimarães Rosa é completamente diferente do estilo de Juan Rulfo. Mas parece que esses dois escritores estão unidos por um fio invisível. Os dois, depois de maduros, encontraram nas recordações da natureza e do povo de seus sertões o ambiente ideal para construírem suas estórias, que são seus saltos poéticos para o universal. Os dois, cada um a seu jeito, eram muito exigentes com a sua ferramenta de trabalho, a linguagem. Por isso, posso recomendar Sagarana e Chão em chamas, pois são o mergulho inaugural, por meio de contos, desses poetas nos sertões míticos que suas obras criam. Parece que o sertão de Rosa é mais caudaloso do que o de Juan Rulfo: seus contos e seu romance são maiores, e ele continuou a produzir novelas e contos depois de Grande Sertão: Veredas, enquanto Juan Rulfo parou de escrever. Mas Sagarana e Grande Sertão dão ampla visão da obra de Guimarães Rosa, e pagam com juros o esforço para se familiarizar com seu mundo e sua linguagem.

Sonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilicht – Tolstói, aristocrata e escritor já reconhecido por seus romances Guerra e Paz e Ana Karienina, às vésperas de completar 50 anos de idade entra em uma crise espiritual que quase o leva ao suicídio. Mais tarde, essa crise iria ganhar expressão literária em duas pequenas obras primas: A morte de Ivan Ilitch (92 páginas) e Sonata a Kreutzer (117 páginas). Os personagens, depois de situações limites, encarnam o esgotamento de sentido da vida orientada apenas para objetivos terrenos e egoístas, ligados à manutenção de uma boa imagem na sociedade. São dois retratos do projeto de vida moderno voltado para o sucesso individual, e uma crítica corrosiva a esse modelo, em que relações como casamento, paternidade e trabalho se esvaziam de seu sentido sagrado e sobrevivem apenas como farsa ou tragédia.

Maomé (uma biografia do profeta) e A Bíblia (uma biografia) – O primeiro já seria recomendado apenas pela narrativa da história de Maomé, do Islã e do Alcorão, objetos de muito preconceito e pouco conhecimento. Mas, como sempre, Karen Armstrong acrescenta reflexões sobre o significado profundo de palavras tão mal compreendidas hoje em dia, como fé, religião, Deus, monoteísmo e compaixão. A Bíblia, como o Alcorão, pode ter seus significados deturpados se não entendemos o contexto em que foi escrita. A deturpação de suas mensagens pode vir quer de seus detratores quer de seguidores que querem ver suas vontades ali expressas. Assim, embora ainda não tenha lido, também recomendo A Bíblia (uma biografia).

Comédias da vida privada – Falei de livros que nos levam a perceber o que nossos sentidos e nossa mente não alcançam: o eterno. Mas quem disse que só o sofrimento e a morte em terras e épocas distantes podem nos aproximar dessa revelação? Luis Fernando Verissimo desarma pelo riso e mostra a eternidade impregnada em cada pequeno acontecimento do cotidiano, como nesse diálogo entre o médico e o futuro pai ou futura mãe na sala de ultra-som:



“— Vai ser homem ou mulher, doutor?
— Não dá para ver. Só sei que vai ser "hacker".
— Por que?
— Ele está interferindo, lá de dentro, na leitura do aparelho.
— Só me diz uma coisa, doutor. Ele ou ela vai nos dar desgostos ou alegrias? Vai ser companheiro ou companheira ou vai nos rejeitar? Vai nos deixar orgulhosos ou pensando em fracassos? Vai ser um amor ou uma peste?
— Vai.”
(Texto de junho de 2008)

Por isso vim

“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.



Minha mãe me disse. E eu prometi que viria vê-lo assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso; pois ela estava morrendo, e eu decidido a prometer tudo. “Não deixe de visitá-lo” recomendou ela. “O nome dele é assim e assado. Tenho certeza que ele vai gostar de conhecer você.” Então não tive outro jeito a não ser dizer a ela que faria isso, e de tanto dizer continuei dizendo mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para se safarem de suas mãos mortas.



Antes ainda, ela tinha me dito:



— Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca... O esquecimento em que nos deixou, filho, você deve cobrar caro.



— Vou fazer isso, mãe.



Mas não pensei em cumprir a minha promessa. Até que agora comecei a me encher de sonhos, e de soltar as ilusões. E assim foi se formando em mim um mundo ao redor da esperança que era aquele senhor chamado Pedro Páramo, o marido da minha mãe. Por isso vim a Comala.”
Assim começa Pedro Páramo, de Juan Rulfo. A narrativa do livro (com saltos no tempo e no foco narrativo) é tão original que o leitor precisa fazer um certo esforço para aprender a lê-lo. Não se trata de dificuldade intransponível. É como andar de bicicleta: a gente pensa que é difícil; cai, levanta, cai, torna a levantar, e quando consegue não há coisa mais fácil. Para se ter uma idéia, apenas na página 67 saberemos que esta narrativa inicial de Juan Preciado foi contada à Dorotea Matraca de debaixo da terra.

O livro gira em torno de Pedro Páramo, todos vêm ao poderoso Dom Pedro, que de sua fazenda Media Luna move o povoado de Comala e seus personagens. Apenas Suzana San Juan não vem a Pedro Páramo, aqui é Pedro que se curva e acaba por trazê-la a Media Luna. Mas o que vem é apenas seu corpo, pois Suzana está longe, inacessível. É a única personagem a quem Pedro, e curiosamente também o Paraíso, pouco ou nada importam. Em sonhos se encontra com um tal Florêncio, do qual pouco se sabe. Quando Suzana morre, os sinos de todas as igrejas de Comala repicam sem parar, atraindo gentes de outras paragens.


“A Media Luna estava solitária, em silêncio. Caminhava-se com pés descalços; falava-se em voz baixa. Enterraram Suzana San Juan e pouca gente em Comala percebeu. Lá havia festa. Apostava-se nos galos, ouvia-se música; os gritos dos bêbados e das tômbolas. Até lá chegava a luz do povoado, que parecia uma auréola sobre o céu cor de cinza. Porque foram dias cor de cinza, tristes para a Media Luna. Dom Pedro não falava. Não saía do seu quarto. Jurou vingar-se de Comala:

— Vou cruzar os braços e Comala vai morrer de fome.

E foi o que ele fez.”
O livro é econômico em palavras; são apenas 148 páginas na edição da obra completa de Juan Rulfo da Editora Record. Assim, quando peguei o jeito de lê-lo, já estava lá pela metade do romance. Então terminei o livro e reli em seguida, apreciando cada detalhe do mundo forjado em palavras pelo autor. Isso há uns dois anos. Agora que entrei de novo em suas páginas, serei novamente levado pelo “barqueiro” Abundio à entrada do povoado de Comala, para procurar o pai:O padre Rentería também é um personagem chave, pois está ali, perdido entre o povo sofredor de Comala e as duas obsessões desse povo: o Paraíso (a salvação da alma) e Pedro Páramo. Veja como o povo de Comala vê o padre Rentería nesses dois diálogos:

“— O padre Rentería alçou-se em armas. Vamos com ele ou contra ele?

— Não tem nem o que discutir. Você que se ponha do lado do governo.

— Mas é que somos irregulares. No governo nos consideram rebeldes.

— Então, vá descansar.

— Acelerado do jeito que estou?

— Então faça o que quiser.

— Pois vou reforçar o padre. Gosto do jeito que eles gritam. Além do mais, a gente leva de pingo a salvação da alma.”

“— Não sei, Juan Preciado. Fazia tantos anos que não levantava a cabeça que me esqueci do céu. E se o tivesse feito, o que teria ganho com isso? O céu alto e meus olhos tão sem visão que vivia satisfeita de saber onde ficava a terra. Além disso, perdi todo o interesse, desde que o padre Rentería me assegurou que eu não ia conhecer a glória nunca. Que nem sequer de longe a veria...Coisa dos meus pecados; mas ele não devia ter me dito. Por si mesma a vida já é trabalhosa. A única coisa que faz a gente mover os pés é a esperança que ao morrer levem a gente de um lugar para o outro; mas quando fecham uma porta pra gente e a que fica aberta é só a do inferno, seria melhor não ter nascido... Pra mim, Juan Preciado, o céu está aqui onde estou agora.

— E sua alma? Onde você acha que ela foi?

— Deve estar vagando pela terra como tantas outras, procurando viventes que rezem por ela. Talvez me odeie pelos maus tratos que lhe dei, mas isso não me preocupa mais. Descansei do vício de seus remorsos. Ela me amargurava até o pouco que eu comia e tornava as minhas noites insuportáveis; enchendo-as de pensamentos inquietos, com figuras de condenados e outras coisas assim. Quando me sentei para morrer, ela implorou que eu levantasse e continuasse arrastando a vida, como se ainda esperasse um milagre que me limpasse das culpas. Não fiz nem sequer uma tentativa. “Aqui termina o caminho”, disse a ela. “Já não tenho forças para mais”. E abri a boca para que fosse embora. E ela foi. Senti quando caiu nas minhas mãos o filete de sangue com que estava amarrada ao meu coração.”

“— A verdade é que nossas mães nos malpariram numa esteira, apesar de sermos filhos de Pedro Páramo. E o mais engraçado é que ele nos levou para batizar. Com o senhor deve ter acontecido a mesma coisa, não é?”

(Texto de abril de 2008)