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quinta-feira, 18 de março de 2010

A Grande Transformação, de Karen Armstrong

Meu filho Rafael é um menininho de seis anos. De vez em quando se dá a ares de preocupado. Uma insatisfação geral com a vida, um tédio. Um não sabe o que, caras de dores. De certo que a cabeçorra muito grande já lhe pesa sobre os pequenos ombros de menino. Pois um dia em que estava nesse estado, dei-lhe a notícia de que vinha em nossa casa seu amigo Beto. Foi-se a nuvem escura, logo se animou:

— O Beto é meu segundo melhor amigo!!

É que o posto de primeiro melhor amigo está ocupado pelo Gui. Desde cedo, as formas da razão, que tanto nos ajudam a organizar o mundo exterior, começam a embaralhar nosso interior e confundir nosso coração. Sem perceber, colocamos nossos amigos numa fila, usamos noções de espaço para lidar com o que não está no espaço. A rigor, não há nenhuma lei que nos impeça de chamar todos os nossos amigos de melhor amigo.

Coisas da inocência, colocar os amigos em fila. Mas nossa razão também aprende muito depressa a enxergar o mundo como um conjunto de coisas separadas e a diferenciar o eu e o meu do resto do mundo. Depois usamos outra forma da mente, que divide as percepções do mundo externo em opostos (dia/noite, quente/frio, doce/azedo, agradável/desagradável), e começamos a dividir o mundo entre o que achamos proveitoso ou nocivo de acordo com nossas inclinações momentâneas, então chamamos bom o que entendemos como proveitoso e mau o que entendemos como nocivo. Mas não percebemos como o bom e o mau nasceram dos nossos julgamentos e desejos íntimos, inclinações e aversões, e acreditamos que se trata de qualidade própria das coisas. Além disso, nosso conhecimento direto do mundo é mínimo, mas como o vazio nos incomoda, completamos com a imaginação o que não sabemos, e depois não sabemos diferenciar imaginação de realidade. Tudo isso somado, a tragédia e comédia humanas estão formadas. Imersos nesse furacão, definitivamente o mundo se transforma em um mar infernal, e não percebemos que o mar calmo se transformou em turbilhão por correntes de nossa mente humana. Impulsionados por sentimentos de ódio e amor violentos, nos debatemos entre monstros imaginários, como Don Quixote com os moinhos.

Se em meio ao sofrimento conseguimos vislumbrar que os gigantes são moinhos de vento, a primeira coisa que fazemos é largar a espada e a fantasia de cavaleiro medieval. Depois nos voltamos para dentro, para o interior, onde está a origem do problema. A partir daí muita coisa boa pode acontecer, mas se acharmos que podemos encontrar algo firme, uma solução definitiva, prática e objetiva, logo estaremos envolvidos em outras guerras contra seres imaginários. O livro A Grande Transformação, de Karen Armstrong, nos mostra como grandes mestres espirituais da humanidade lidaram com esses mesmos problemas e fizeram de suas vidas uma busca que é símbolo da busca do homem para se superar. Trago aqui apenas uma parábola do cânone budista recontada por Karen Armstrong no seu livro. Parábolas são excelentes porque podemos extrair significados delas, mas o texto não propõe um significado rígido, um dogma. Mas vamos ao trecho:

“Buda gostava de contar a história de um viajante que se deparou com uma grande extensão de água e precisava desesperadamente atravessá-la. Não vendo ponte nem barco, improvisou uma jangada e remou até a outra margem. O que deve então fazer com a jangada? Carregá-la por toda parte, já que lhe fora tão útil? Ou simplesmente amarrá-la e seguir viagem? A resposta era óbvia.”
Buda comparou a jangada construída pelo viajante à sua doutrina. O objetivo da doutrina budista é que o homem que sofre consiga perceber o mecanismo que o leva a sofrer. Para desarmar esse mecanismo, o principal instrumento é dar vazão à compaixão natural que está dentro dele e se desapegar do eu egoísta que o envolveu em cobiça, ódio, anseios e medo – é o se afastar da margem. Se bem sucedido em deslocar do eu o ponto de vista, o mundo seria visto de uma outra maneira, mais real e iluminada, embora tudo nele seja impermanente.

Essa parábola me ensina que o importante no caminho espiritual é chegar à outra margem; ou seja, sair do mundo povoado por monstros e heróis, afastar-se da margem, ver o mundo de uma nova maneira e retornar ao mesmo mundo, que não será mais o mesmo, devido à mudança de perspectiva. A jangada que vai levar ao outro modo de enxergar deve ser improvisada por cada viajante, e não há uma só maneira de construí-la, embora sejam úteis as pistas e informações de quem já atravessou o rio. Não entendo nem o atravessar do rio como algo que é feito de uma vez por todas nem o amarrar a jangada como indicação de que o meio para a travessia se tornou inútil. Aqui vejo uma afirmação da vida, inexplicável pela razão. Não vamos ficar na jangada confortavelmente contemplando o mundo de impermanência e sofrimento, mas penetrar de novo no mundo, reafirmar aquele eu que com tanto esforço apagamos, e voltar a caminhar no mundo. E só podemos caminhar no mundo usando todas aquelas forças e formas da mente que foram suspensas para que pudéssemos ver a realidade iluminada. Na caminhada poderemos perceber que essas forças e formas da mente sempre tendem a nos jogar de novo em uma visão distorcida e precisaremos sempre reconstruir aquela jangada, ou desamarrá-la, se ainda a encontramos nos desvãos de nossa mente. É como se no homem egoísmo e compaixão devessem não matar um ao outro, como numa disputa territorial, ou sucederem-se no tempo, como o dia e a noite, mas se confrontarem em matrimônio, como na visão poética do Matrimônio do Céu e do Inferno, de William Blake.

DEGUSTAÇÃO NO GOOGLE BOOKS!!!

(Texto de maio de 2008)

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