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domingo, 21 de março de 2010

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA

Construí minha última coluna apenas com citações de Viktor Emil Frankl. A idéia foi deixá-lo falar para que, como eu, meus leitores pudessem ter uma experiência direta do seu texto que pudesse levá-los a procurar saber mais sobre o autor e seus livros. Mas dessa vez vou enfrentar o compromisso que assumi de deixar falar minha própria voz, apesar das dificuldades.

Terminados os livros de Viktor Emil Frankl, algumas idéias continuam brincando na minha cabeça. A principal é a inversão de nossa maneira de encarar a vida: ao invés de esperar qualquer coisa da vida, precisamos perceber o que devemos fazer diante da vida, qualquer vida, que nos é dada. Sua experiência no campo de concentração e na psicoterapia o leva a afirmar que mesmo nas situações mais extremas, e mesmo na morte, a vida tem potencialmente um sentido. Infelizmente, não podemos esperar que médico, padre, livro, amigo ou amante nos digam qual o sentido da nossa vida neste momento, respondam à pergunta mais urgente: “O que fazer?” Apenas cada um pode responder a essa pergunta com a própria vida em cada situação/desafio com que a vida nos confronta. E, enquanto durar a vida, nenhuma resposta põe fim à pergunta.

Uma coisa é entender esse ponto de vista, que não me parece complicado. Mas para vivê-lo há muitas dificuldades, das quais a mais básica é a falta de fé, ou pelo menos de um pouco de boa vontade com a vida e com o mundo. Essa é uma grande tarefa, que não consigo iludir com falsidades. Nem, como ressaltou Frankl, é uma questão de querer. Não se ordena, nem a si mesmo, sentimentos como fé, esperança e amor, a não ser que queiramos nos afastar deles.

Jean-Dominique Bauby, redator-chefe da revista Elle, em Paris, em um sábado em que tinha programado passar o fim de semana com seu filho de 10 anos, sofreu um acidente vascular cerebral. Depois de um mês em coma, acordou para descobrir que o acidente deixara seu tronco encefálico fora de circuito, e o tal tronco é passagem obrigatória entre o encéfalo e as terminações nervosas. Era um caso raro do que os ingleses chamam de Locked-in syndrome: paralisado da cabeça aos pés, o paciente fica trancado no interior de si mesmo com o espírito intacto, tendo os batimentos de sua pálpebra esquerda como o único meio de comunicação. E foi através dos movimentos da pálpebra que ele pôde se comunicar com quem se dispusesse a lhe ditar todo o alfabeto, para que, com uma piscada, Jean-Do pudesse passar suas mensagens, letra por letra. Aqui não se podem minimizar as dificuldades e o sofrimento, mas ele conseguiu, de dentro de seu escafandro, manter as relações humanas de antes do acidente e criar novas relações com alguns anjos da guarda que andam pelos hospitais. Para refutar os boatos de que se transformara em um legume, escreveu cartas destinadas aos seus parentes e amigos dando notícias de sua situação. Como antes do acidente tinha um contrato com sua editora para escrever um livro, desistiu do plano inicial da obra e escreveu o que chamou de “cadernos de viagem imóvel”, que se transformou no belíssimo livro “O escafandro e a borboleta”. Com o livro, Jean-Do dá notícia de que dentro do seu escafandro vive um homem. Para mim, a notícia é que dentro de todos os escafandros há algo sagrado, que devemos tratar com dignidade.

No livro sabemos que o pai de Jean-Do, aos 93 anos, sem poder descer e subir as escadas de seu prédio, também vivia em um escafandro, que era o seu apartamento. Será que todos estamos presos em escafandros? Seremos todos, para usar outras imagens do livro, “voadores de asas quebradas, papagaios sem voz”? Também a borboleta sai de um casulo rígido, não sem esforço e paciência, para uma breve vida. Há uns vinte anos alguém me disse que eu parecia um caracol, que por momentos se expõe, mas logo volta a se esconder em sua casa; disse também que eu deveria sair mais da minha concha, correr mais esse risco. De dentro de minha concha de caracol também solto vez ou outra as minhas borboletas: são gestos de amor e compreensão com os filhos e a esposa, e, por que não, esses pequenos textos que escrevo para o Leiame.

(Texto de agosto de 2008)

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