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domingo, 21 de março de 2010

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

A história contada por José Saramago no livro Ensaio sobre a cegueira começa com um homem que fica cego, de repente, enquanto espera o sinal verde ao volante de seu carro. Além de repentina, essa cegueira é algo estranha, pois o homem ao invés de mergulhar nas trevas, vê tudo branco, como se estivesse imerso num mar de leite. A mulher do primeiro cego o leva ao oftalmologista, que é o médico de olhos e deve saber do que se trata. No princípio nos parece que este médico será o protagonista da história, este médico atencioso e abnegado que estava com o consultório repleto de pacientes e que vai estudar em casa até altas horas à procura de alguma luz sobre o estranho caso de cegueira branca que apareceu num homem com olhos perfeitos – “aquele homem não devia estar cego”. Enganamo-nos, o médico não é o protagonista desta história, nesta mesma noite cega este médico, logo cegam os pacientes que estavam no seu consultório, e nessa escalada cegarão governo, autoridades, soldados, enfim, todo mundo. A nossa protagonista é a mulher do médico, única a enxergar neste mundo de cegos (“...mas nenhum de nós, candeias, cães ou humanos, sabe, ao princípio, tudo para que tinha vindo ao mundo”, pg. 260). A mulher do médico é a única a se entregar ao socorro dos cegos mesmo sabendo do perigo de contágio. Seus olhos guiarão um grupo de desconhecidos que logo se constituirá em uma autêntica família: o médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o menino estrábico, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta. O médico, que não pode dizer nada a respeito dessa cegueira que desafia qualquer razão, terá que se recolher a um papel que nem secundário é, já que a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta tornam-se mais importantes neste mundo transformado, pois, ainda que cegos, entendem melhor a visão da mulher do cego.

O ponto de partida do livro é surrealista: uma cegueira branca que acomete todos menos a mulher do médico, sem qualquer explicação. Mas os fatos relatados são extremamente realistas: a quarentena, o medo, a sujeira, os conflitos, a vida que surge daí, a degradação da sociedade etc. Uma obra-de-arte é um caleidoscópio que permite infinitas visões, assim também se pode ver por trás da narrativa de José Saramago um lindo poema sobre a arte e o invisível para o qual aponta. Afinal, nos dias de hoje a arte deve agradecer se lhe oferecem o papel coadjuvante de mulher do médico. No entanto, como a mulher do médico, a arte é a única a enxergar em um mundo de cegos (“A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”, pg. 241). Se a ciência e os olhos vêem o visível, a arte vê o invisível e com os olhos da arte também o homem é capaz de ver o invisível que dá significado mesmo à vida mais miserável.

Um escritor aparece brevemente no livro, cego também, mas pacientemente escrevendo um livro que ninguém pode ler. Já quase esgotada em seu esforço de ser os olhos do mundo, a mulher do médico entra em uma igreja para se recuperar. Ao levantar o rosto, vê que “todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados, as esculturas com um pano branco atado ao redor da cabeça, as pinturas com uma grossa pincelada de tinta branca, e estava além uma mulher a ensinar a filha a ler, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno, e os dois tinham os olhos tapados, e um velho de barbas compridas, com três chaves na mão, e tinha os olhos tapados, e outro homem com o corpo cravejado de flechas, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma lanterna acesa, e tinha os olhos tapados,(...), só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados em uma bandeja de prata (pg. 301)”. A mulher do médico, as imagens da arte, a literatura, esses olhos servidos numa bandeja de prata, ainda que continuem a ver, também vão se tornando cegos à medida que menos pessoas os enxergam. Quando a mulher do médico informa ao marido que todas as imagens da igreja estão com os olhos vendados, trava-se o seguinte diálogo, iniciado pelo médico: “Que estranho, por que será, Como hei-de eu saber, pode ter sido obra de algum desesperado da fé quando compreendeu que teria de cegar como os outros, pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja (pg. 302)”.

Dentro do livro, há belos quadros pintados com palavras: a mulher do médico que serve água pura em copos de cristal (“No fim, disse, Bebamos. As mãos cegas procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo, Bebamos, repetiu a mulher do médico. No centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar.” pg. 264); as três mulheres lavando a roupa e se lavando na chuva (“três graças nuas sob a chuva que cai”, pg. 267); a rapariga dos óculos escuros ensaboando as costas do velho da venda  preta (“, era um homem de espuma, branco no meio de uma imensa cegueira branca onde ninguém o poderia encontrar, se o pensou enganava-se, nesse momento sentiu que umas mãos lhe tocavam as costas, que iam recolher-lhe a espuma dos braços, do peito também, e depois lha espalhavam pelo dorso, devagar, como se, não podendo ver o que faziam, mais atenção tivessem de dar ao trabalho”, pg. 270).

Ao fim do livro, a cegueira branca desaparece, na rua coberta de lixo as pessoas gritam e cantam. O médico começa a retomar sua preponderância diante das mazelas lógicas: ele irá operar a catarata do velho da venda preta. A mulher do médico, novamente recolhida ao papel secundário, conversa com o marido:

“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”

(Texto de setembro de 2008)

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