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quinta-feira, 18 de março de 2010

Por isso vim

“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.



Minha mãe me disse. E eu prometi que viria vê-lo assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso; pois ela estava morrendo, e eu decidido a prometer tudo. “Não deixe de visitá-lo” recomendou ela. “O nome dele é assim e assado. Tenho certeza que ele vai gostar de conhecer você.” Então não tive outro jeito a não ser dizer a ela que faria isso, e de tanto dizer continuei dizendo mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para se safarem de suas mãos mortas.



Antes ainda, ela tinha me dito:



— Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca... O esquecimento em que nos deixou, filho, você deve cobrar caro.



— Vou fazer isso, mãe.



Mas não pensei em cumprir a minha promessa. Até que agora comecei a me encher de sonhos, e de soltar as ilusões. E assim foi se formando em mim um mundo ao redor da esperança que era aquele senhor chamado Pedro Páramo, o marido da minha mãe. Por isso vim a Comala.”
Assim começa Pedro Páramo, de Juan Rulfo. A narrativa do livro (com saltos no tempo e no foco narrativo) é tão original que o leitor precisa fazer um certo esforço para aprender a lê-lo. Não se trata de dificuldade intransponível. É como andar de bicicleta: a gente pensa que é difícil; cai, levanta, cai, torna a levantar, e quando consegue não há coisa mais fácil. Para se ter uma idéia, apenas na página 67 saberemos que esta narrativa inicial de Juan Preciado foi contada à Dorotea Matraca de debaixo da terra.

O livro gira em torno de Pedro Páramo, todos vêm ao poderoso Dom Pedro, que de sua fazenda Media Luna move o povoado de Comala e seus personagens. Apenas Suzana San Juan não vem a Pedro Páramo, aqui é Pedro que se curva e acaba por trazê-la a Media Luna. Mas o que vem é apenas seu corpo, pois Suzana está longe, inacessível. É a única personagem a quem Pedro, e curiosamente também o Paraíso, pouco ou nada importam. Em sonhos se encontra com um tal Florêncio, do qual pouco se sabe. Quando Suzana morre, os sinos de todas as igrejas de Comala repicam sem parar, atraindo gentes de outras paragens.


“A Media Luna estava solitária, em silêncio. Caminhava-se com pés descalços; falava-se em voz baixa. Enterraram Suzana San Juan e pouca gente em Comala percebeu. Lá havia festa. Apostava-se nos galos, ouvia-se música; os gritos dos bêbados e das tômbolas. Até lá chegava a luz do povoado, que parecia uma auréola sobre o céu cor de cinza. Porque foram dias cor de cinza, tristes para a Media Luna. Dom Pedro não falava. Não saía do seu quarto. Jurou vingar-se de Comala:

— Vou cruzar os braços e Comala vai morrer de fome.

E foi o que ele fez.”
O livro é econômico em palavras; são apenas 148 páginas na edição da obra completa de Juan Rulfo da Editora Record. Assim, quando peguei o jeito de lê-lo, já estava lá pela metade do romance. Então terminei o livro e reli em seguida, apreciando cada detalhe do mundo forjado em palavras pelo autor. Isso há uns dois anos. Agora que entrei de novo em suas páginas, serei novamente levado pelo “barqueiro” Abundio à entrada do povoado de Comala, para procurar o pai:O padre Rentería também é um personagem chave, pois está ali, perdido entre o povo sofredor de Comala e as duas obsessões desse povo: o Paraíso (a salvação da alma) e Pedro Páramo. Veja como o povo de Comala vê o padre Rentería nesses dois diálogos:

“— O padre Rentería alçou-se em armas. Vamos com ele ou contra ele?

— Não tem nem o que discutir. Você que se ponha do lado do governo.

— Mas é que somos irregulares. No governo nos consideram rebeldes.

— Então, vá descansar.

— Acelerado do jeito que estou?

— Então faça o que quiser.

— Pois vou reforçar o padre. Gosto do jeito que eles gritam. Além do mais, a gente leva de pingo a salvação da alma.”

“— Não sei, Juan Preciado. Fazia tantos anos que não levantava a cabeça que me esqueci do céu. E se o tivesse feito, o que teria ganho com isso? O céu alto e meus olhos tão sem visão que vivia satisfeita de saber onde ficava a terra. Além disso, perdi todo o interesse, desde que o padre Rentería me assegurou que eu não ia conhecer a glória nunca. Que nem sequer de longe a veria...Coisa dos meus pecados; mas ele não devia ter me dito. Por si mesma a vida já é trabalhosa. A única coisa que faz a gente mover os pés é a esperança que ao morrer levem a gente de um lugar para o outro; mas quando fecham uma porta pra gente e a que fica aberta é só a do inferno, seria melhor não ter nascido... Pra mim, Juan Preciado, o céu está aqui onde estou agora.

— E sua alma? Onde você acha que ela foi?

— Deve estar vagando pela terra como tantas outras, procurando viventes que rezem por ela. Talvez me odeie pelos maus tratos que lhe dei, mas isso não me preocupa mais. Descansei do vício de seus remorsos. Ela me amargurava até o pouco que eu comia e tornava as minhas noites insuportáveis; enchendo-as de pensamentos inquietos, com figuras de condenados e outras coisas assim. Quando me sentei para morrer, ela implorou que eu levantasse e continuasse arrastando a vida, como se ainda esperasse um milagre que me limpasse das culpas. Não fiz nem sequer uma tentativa. “Aqui termina o caminho”, disse a ela. “Já não tenho forças para mais”. E abri a boca para que fosse embora. E ela foi. Senti quando caiu nas minhas mãos o filete de sangue com que estava amarrada ao meu coração.”

“— A verdade é que nossas mães nos malpariram numa esteira, apesar de sermos filhos de Pedro Páramo. E o mais engraçado é que ele nos levou para batizar. Com o senhor deve ter acontecido a mesma coisa, não é?”

(Texto de abril de 2008)

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