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quarta-feira, 24 de março de 2010

SONHO/FANTASIA/ESTÓRIA EM TERRA SONÂMBULA (citações)

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (pg. 5)

A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda vai se enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos. (pg. 14)

As estórias dele faziam nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo.(pg. 15)

E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre estes dois mundos. (pg. 17)

A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios de nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. (pg. 18)

Então ele com um pequeno pau rabisca na poeira do chão: “AZUL”. Fica a olhar o desenho, com a cabeça inclinada sobre o ombro. Afinal, ele também sabia escrever? Averiguou as mãos quase com medo. (pg. 37)

Muidinga repara que a paisagem, em redor, está mudando suas feições. A terra continua seca mas já existem nos ralos capins sobras de cacimbo. Aquelas gotinhas são, para Muidinga, um quase prenúncio de verdes. (pg 49)

Era verdade: que valores arrecadava o autocarro agora que as reservas de comida se esgotavam? Porém, para Muidinga, não regressar seria enorme desgosto. Ele se admira: o que o prendia àqueles destroços na estrada? Então, lhe veio a resposta clara: eram os cadernos de Kindzu, as estórias que ele vinha lendo cada noite. E sente saudade das linhas, tantas quanto os passos que agora desfia pelos atalhos. (pg. 51)

Ela só tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história. (pg. 62)

E ao ouvir os sonhos de Tuahir, com os ruídos da guerra por trás, ele vai pensando: “não inventaram ainda uma pólvora suave, maneirosa, capaz de explodir os homens sem lhes matar. Uma pólvora que, em avessos serviços, gerasse mais vida. E do homem explodido nascessem os infinitos homens que lhes estão por dentro”. (pg. 68)

Muidinga olha a paisagem e pensa. Morreu um homem que sonhava, a terra está triste como uma viúva. (pg. 89)

— Não dorme, tio?
— Não. Desconsigo de dormir.
— É por causa do homem do rio.
— Nada. Nem lembro isso. É que sinto falta das estórias.
— Quais estórias?
— Essas que você lê nesses caderninhos. Esse fidamãe desse Kindzu já vive quase conosco. (pg. 90)

À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas a cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (pg. 99)

Precisava salvar Farida porque ela me salvava da miséria de existir pouco. Havia, por fim, um alguém que não estava metido no mesmo lodo em que chafundávamos, alguém que mantinha a esperança, louca que fosse. Farida, ao menos, tinha uma ilha com um inviável farol, um barco que viria de lá onde habitam os anjonautas.

Ao avistar a praia de Matimati, comprovei como são nossos olhos que fazem o belo. Meu estado de paixão puxava um novo lustro àquela terra em ruínas. Aquelas visões, dias antes, já tinham estado em meus olhos. Porém, agora tudo me parecia mais cheio de cores, em assembleia de belezas. (pg. 104)

— Sabe, miúdo, o que vamos fazer? Você me vai ler mais desses escritos.
— Mas ler agora, com esse escuro?
— Acendes o fogo lá fora.
— Mas, com a chuva, a lenha toda se molhou.
— Então vamos acender o fogo dentro do machimbombo. Juntamos coisa de arder lá mesmo.
— Podemos, tio? Não há problema?
— Problema é deixar esse escuro entrar na cabeça da gente. Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir. (pg. 125 e 126)

Tudo acontecera na vizinhança do autocarro. Era o país que desfilava por ali, sonhambulante. Siqueleto esvaindo, Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando gafanhotos, tudo o que se passara tinha sucedido em plena estrada.
— É miúdo, estamos a viajar: nesse machimbombo parado nós não paramos de viajar. Me faz lembrar quando andava no comboio. (pg. 137)

O velho pede então que o miúdo dê voz aos cadernos. Dividissem aquele encanto como sempre repartiram a comida. Ainda bem você sabe ler, comenta o velho. Não fossem as leituras eles estariam condenados à solidão. Seus devaneios caminhavam agora pelas letrinhas daqueles escritos. (pg. 139)

Olhando as alturas, Muidinga repara nas várias raças das nuvens. Brancas, mulatas, negras. E a variedade dos sexos também nelas se encontrava. A nuvem feminina, suave: a nua-vem, nua-vai. A nuvem-macho, arrulhando com peito de pombo, em feliz ilusão de imortalidade.

E sorri: como se pode jogar com as mais longínquas coisas, trazer as nuvens para perto como pássaros que vêm comer em nossa mão. (pg. 153)

— Conte, tio. Se é uma estória me conte, nem importa se é verdade. (154)

O que vi ali me encheu de fantasia, estórias de reaver este mundo onde não cabemos. (Pg. 158)

Mais Virgínia repete os contos mais a verdade se resvala: o avô Cruz de olhos louros, hoje; amanhã um negro de rosto carapinhoso. A criançada nem se importa. Verdade, em infância, é um jogo de brincar. Em redor da anciãzinha, os miúdos sempre folgam, sem desilusão. Com gesto largo, ela pede menos barulho. Deixassem chegar, audíveis, as ordens de Deus. Que ele que mandava os viventes descansarem:

— Vocês com vosso barulho nem me deixam ouvir a ordem Dele. Se calhar, até já me mandou descansar, nem dei por isso...(pg 160/161)

— Vovó, deixe ele viver! Só um bocadinho!
— Para o quê?
— Para ele nos contar a estória dele. (pg. 163)

Tuahir mira e admira. Há dias que não se arredam do machimbombo. No entanto, a paisagem em volta vai negando a aparente imobilidade da estrada. (pg. 174)

— O que andas a fazer com um caderno?
— Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
— E alguém vai ler isso?
— Talvez.
— É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
— Mas pai, o que passa com essa nossa terra?
— Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens dormem, a terra anda procurar.
— A procurar o quê, pai?
— É que a vida não gosta sofrer. A terra anda procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos sonhos. (pg. 182)

A menina recordava coisas que nunca houveram. Mas punha tanta alma na lembrança que todos se recordavam com ela. Acontecera com o dilúvio dos dinheiros, moedas chovendo sem parar, cobrindo o chão de pratas e tilintações. E todos refugiados se lançaram de gatas, facocherando na poeira. Não fora a única visão de Jotinha, suas miraginações se seguiam sempre contra o regime da realidade. (pg. 186)

— Pare, Euzinha, pare!
— Não vê que estou parada, o mundo é que está dançar.
Assim, pondo a terra a girar, em brincriação de menina, fechou os olhos com doçura. (pg. 192)

As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água a chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. (pg. 196)

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