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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Apologia de Sócrates, de Platão, e Em busca de um mundo melhor, de Karl Popper

Em 399 AC, aos 70 anos, Sócrates afirma em seu julgamento que a única sabedoria que possui é a consciência da própria ignorância. A idéia central da Apologia de Sócrates, de Platão, é que a autoridade não é critério de verdade, e que as afirmativas dos que se julgam sábios não passam de opiniões, muitas vezes opiniões que não se sustentam diante de algumas perguntas. O problema na pretensa sabedoria é que ela se fecha à critica, e com isso normalmente seus preceitos se deterioram. Sabedoria  então deve ser a consciência de não possuir qualquer sabedoria. Mas não é só isso. Também atravessa toda a defesa de Sócrates a hipótese de que podemos chegar a opiniões melhores, e portanto nos aproximarmos da verdade, se formos submetidos à investigação crítica. A maior tolice, portanto, que os cidadãos de Atenas poderiam fazer era condenar Sócrates ao exílio, ao silêncio ou à morte, pois sua vida era dedicada a fazer-lhes um bem, censurando-os e testando suas opiniões. No tribunal, Sócrates adverte seus juízes: “Se vocês me matarem, passarão o resto de suas vidas em sonolência, a menos que o Deus, no seu zelo, envie alguém mais para os aguilhoar”. 

Em 1984, aos 82 anos, Karl Popper reuniu, por meio de uma coleção de conferências, suas opiniões sobre conhecimento, política e ética em um livro chamado Em busca de um mundo melhor. As ideias que impulsionaram toda a sua filosofia já estavam presentes na Apologia de Sócrates, não sendo por acaso que Popper considere a Apologia o mais belo escrito filosófico que ele conhece. Popper, como o Sócrates da Apologia, acredita que não há realmente sabedoria, mas apenas opiniões, tentativas falíveis de solucionar problemas na busca por um mundo melhor. Inclusive todo o conhecimento científico é uma coleção de opiniões. Não há prova na ciência, não há certeza em suas teorias. Se a ciência chegou a resultados fantásticos, a opiniões muito boas, isto se deve ao fato de que o método do conhecimento científico é o método crítico: o método da busca de erros e da eliminação de erros a serviço da busca da verdade.

Em seu livro mais conhecido, A sociedade aberta e seus inimigos, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, Karl Popper disseca a história do autoritarismo e faz uma defesa vigorosa da democracia. Na filosofia, Popper é reconhecido principalmente por sua contribuição à filosofia da ciência, que ficou conhecida como falsificabilidade. Popper defende que a ciência não tem um método próprio para chegar às suas teorias, quer dedutivo ou indutivo. Não interessa a fonte da teoria científica, ou seja, como se chegou à formulação da teoria (intuição, criatividade, crença popular, sonho, observação, dedução, etc). A característica do método científico é colocar as teorias sob ataque, não para confirmá-las, mas para tentar falsificá-las, provar que estão erradas. A cada teoria falsificada, o entendimento sobre o assunto aumenta e há a necessidade de elaborar novas teorias.

A semelhança entre o método científico descrito por Popper e o comportamento de Sócrates diante do oráculo de Delfos é evidente. O oráculo havia dito que “Sócrates é o mais sábio entre os homens”. Como Sócrates estava consciente de que não possuía nenhuma sabedoria, procurou mostrar que o oráculo havia se enganado, interrogando um individuo que gozava a reputação de ser sábio. Depois de conversar com esse homem, um político, viu que ele se julgava sábio, mas não era. Sócrates concluiu então que provavelmente era mais sábio do que aquele homem, na modesta medida que não julgava saber de coisas que não conhecia. Assim, seguiu interrogando poetas, trágicos, artesãos para demonstrar de forma efetiva ser menos sábio que eles. Os resultados dessa investigação levaram Sócrates a uma nova hipótese, a de que o oráculo não estava falando nada sobre Sócrates, mas usando-o como exemplo para dizer: “É entre vós, ó seres humanos, mais sábio aquele que, como Sócrates, reconhece que na realidade não possui nenhuma sabedoria”. E mesmo esta nova teoria, Sócrates nunca a tem como certa: “...prossigo ainda nessa busca, investigando, segundo o comando do Deus, todo indivíduo, cidadão ou estrangeiro, que julgo ser sábio”.

As conferências reunidas no livro de Karl Popper tratam de vários assuntos referentes a nossa história recente de uma forma muito clara, como é obrigação de um filósofo que quer oferecer opiniões (e também refutações de opiniões correntes) para o exame crítico, para a busca de erros, para o teste do leitor. Mas a lição central, de humildade intelectual e respeito à opinião dos outros, é uma lição perene, que nunca vai envelhecer e nunca vai perder importância. Quase todos nós concordamos com Sócrates quando se trata da opinião dos outros, mas em relação à nossa opinião ou à opinião da qual somos partidários, confundimos certeza subjetiva com prova objetiva, e somos assassinos de Sócrates. Não aceitamos que temos opiniões, como os outros, mas julgamos ter certezas incontestáveis que precisam ser impostas de qualquer maneira para o bem geral. Basta dizer que o mesmo Platão que escreveu a Apologia de Sócrates, defendeu em outros livros (A República e As Leis) um sistema político que sabe tudo e não tolera qualquer crítica ou crítico.

Em busca de um mundo melhor

O título do livro não é em busca do mundo ideal, do melhor mundo ou do mundo perfeito. Não devemos desistir de buscar um mundo melhor, tanto na nossa vida privada como pública. Seria como desistir da vida. Mas precisamos da humildade, tão difícil, de reconhecer que somos seres falíveis e, além disso, não podemos prever todas as consequências de nossos atos. Constantemente erramos, nossa busca por um mundo melhor piora o mundo. O único jeito é sempre, e para sempre, submeter nossas ideias e  ações à crítica racional.

Popper: “... Com nossa linguagem, nossa ciência e nossa técnica podemos prever as consequências futuras de nossos sonhos, desejos e invenções melhor do que as plantas e os animais, mas não muito melhor. É importante percebermos quão pouco sabemos sobre essas consequências imprevisíveis de nossas ações. Os melhores meios que estão a nossa disposição continuam sendo tentativa e erro: tentativas que muitas vezes são perigosas e erros ainda mais perigosos – às vezes perigosos para a humanidade.

A crença numa utopia política representa um perigo especial. Isso possivelmente está ligado ao fato de que a busca por um mundo melhor é (se estou certo), similarmente à investigação do nosso entorno, um dos mais antigos e importantes instintos de vida. Acreditamos, com razão, que podemos e devemos contribuir para a melhora de nosso mundo. Mas não podemos imaginar que somos capazes de prever as consequências de nossos planos e ações. Sobretudo, não devemos sacrificar nenhuma vida humana (a não ser talvez a nossa própria, em caso extremo). Também não temos nenhum direito de motivar os outros, nem mesmo tentar convencê-los, a se sacrificar – nem mesmo por uma ideia, uma teoria, que nos tenha persuadido por completo (provavelmente sem razão, por causa de nossa ignorância).

Em todo caso, uma parte de nossa busca por um mundo melhor deve consistir em buscar um mundo tal em que os outros não precisem sacrificar sua vida involuntariamente por uma ideia.”

Titãs: “Nenhuma ideia vale uma vida.”

Apologia de Sócrates

Na Apologia,  Sócrates apresenta suas ideias com clareza e bom humor. Mas o leitor fica cheio de dúvidas a respeito deste julgamento: Que julgamento é este? Que acusação esquisita é esta? Por que Sócrates se defende deste jeito? Por que ele é condenado?

Saber sobre os antecedentes do julgamento ajuda a responder essas perguntas. Reproduzo abaixo partes do livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos em que Karl Popper relata esses acontecimentos e dá sua versão para o julgamento de Sócrates. Ainda que essa versão possa ser contestada, e haja controvérsias sobre quais eram as ideias de Sócrates e quais as de Platão, e se as deste realmente se distanciaram das daquele. Ainda assim, como leitor não tenho dúvida de que a versão abaixo ajuda a entender o livro Apologia de Sócrates e seu livro irmão, Críton:

“Atenas se envolveu em quase trinta anos de guerra contra Esparta (de 431 AC a 404 AC). Ao final, Atenas caiu e suas muralhas foram destruídas. A principal responsabilidade pela perda da guerra recai sobre os oligarcas traidores que continuamente conspiraram com Esparta. Entre eles se destacaram três antigos discípulos de Sócrates: Alcibíades, Crítias e Cármides. Depois da queda de Atenas, os dois últimos tornaram-se líderes dos Trinta Tiranos, que não passavam de um governo títere sob proteção espartana. Crítias, por esse tempo, mandava matar dezenas e dezenas de cidadãos de Atenas; durante os oito meses de seu reinado de terror, o número de atenienses mortos era quase maior do que o de mortos durante os últimos dez anos da Guerra do Peloponeso. Mas os democratas continuaram a lutar. Com uma força a princípio de apenas setenta, prepararam, sob a direção de Trasíbulo e Anito, a libertação de Atenas. Crítias e a guarnição espartana foram atacados e derrotados pelos democratas, que se estabeleceram no Pireu, e Crítias e Cármides, ambos tios de Platão, perderam a vida na batalha. Seus seguidores oligárquicos continuaram por certo tempo com o reinado do terror na cidade de Atenas, mas suas forças estavam em estado de confusão e dissolução. Havendo-se demonstrado incapazes de governar, foram finalmente abandonados por seus protetores espartanos, que concluíram um tratado com os democratas. 

Logo que a democracia restaurada reestabelecera normais condições legais, foi iniciado um processo contra Sócrates. Sua significação era bastante clara; ele era acusado de haver tido influência na educação dos mais perniciosos inimigos do Estado: Alcibíades, Crítias e Cármides. Certas dificuldades para a acusação foram criadas por uma anistia concedida a todos os crimes políticos cometidos antes do reestabelecimento da democracia. O libelo não podia, portanto, referir-se abertamente àqueles casos notórios. E os acusadores provavelmente não procuravam tanto castigar Sócrates pelos infelizes acontecimentos do passado, que, como eles bem sabiam, haviam ocorrido contra as suas intenções. O objetivo principal dos acusadores era impedir Sócrates de continuar com seus ensinamentos, os quais, em vista dos efeitos, não podiam deixar de ser considerados como perigosos ao Estado democrático. Por esses motivos, foi dada à acusação a forma vaga e mesmo sem significação de que Sócrates estava corrompendo a juventude, de que era ímpio e de que tentara introduzir no Estado novas práticas religiosas. (Estas duas últimas afirmações sem dúvida manifestavam, embora toscamente, o sentimento correto de que, no campo ético-religioso, ele era um revolucionário). Em razão da anistia, a “juventude corrompida” não podia ser precisamente citada, mas todos sabiam, sem dúvida, de quem se falava.  Em sua defesa, Sócrates insistiu em que não tinha simpatia pela política dos Trinta e em que realmente arriscara a vida ao desafiar uma tentativa do governo de implicá-lo em um de seus crimes. E lembrou ao tribunal que entre seus mais íntimos companheiros e mais entusiásticos discípulos havia pelo menos um ardente democrata, Querofonte, que lutara contra os Trinta.

É hoje conhecido que Anito, o dirigente democrático que apoiou a acusação, não pretendia fazer de Sócrates um mártir. O alvo era exilá-lo. Mas esse plano foi derrotado pela recusa de Sócrates em transigir com seus princípios. Não creio que ele quisesse morrer, ou que lhe agradasse o papel de mártir. Ele simplesmente lutou por aquilo que acreditava ser certo. Nunca pretendera minar a democracia. De fato, tentara dar-lhe a fé que era necessária. Fora esta a tarefa de sua existência. E ela estava, sentia ele, seriamente ameaçada. A traição a Atenas levada a cabo por seus antigos companheiros deixara sua obra e ele mesmo aparecerem a uma luz que o deve ter perturbado profundamente. É possível que tenha até saudado o julgamento como uma oportunidade para provar que sua lealdade à cidade era sem limites.

Sócrates explicou esta atitude com a máxima minúcia quando lhe foi dada uma oportunidade de fuga. Se a tivesse aproveitado, exilando-se, todos o teriam julgado um inimigo da democracia. Assim, permaneceu e expôs suas razões. Esta explanação pode ser encontrada no Críton, de Platão. É simples. Se eu partir, diz Sócrates, violarei as leis do Estado democrático. Tal ato me colocaria em oposição às leis de Atenas e provaria minha deslealdade. Prejudicaria o Estado. Somente permanecendo posso mostrar, fora de dúvida, minha lealdade para com Atenas e suas leis democráticas, e provar que nunca fui seu inimigo.

A morte de Sócrates é a derradeira prova de sua sinceridade. Mostrou ele que um homem podia morrer não só pelo destino, pela fama ou por outras grandes coisas desta espécie, mas também pela liberdade do pensamento crítico e por um respeito de si mesmo que nada tem a ver com auto-importância ou sentimentalismo.”


Em Tempo


As críticas também são opiniões, também são falíveis e só podem melhorar se também se abrirem à crítica.

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