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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Pobre tradução

Não sou de ficar analisando tradução. Mas não se precisa saber muito inglês nem ler o original para observar certos erros graves. Como na página 26 do livro Invictos, de John Carlin. Está lá: "Sua decisão de entrar no CNA como um homem jovem aos 40 anos; sua liderança desafiadora na campanha contra o apartheid aos 50; (...)" Mais tarde o leitor descobrirá que Mandela entrou no CNA aos 25 anos. Fica claro que o certo seria: "Sua decisão de entrar no CNA como um homem jovem nos anos 40; sua liderança desafiadora na campanha contra o apartheid nos 50; (...)". Um erro grosseiro como esse abala a confiança do leitor. Pena que a edição brasileira não tenha o capricho que o livro merece.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Invictus, de John Carlin (o livro)

Há o filme Invictus, de Clint Eastwood, e há o livro Invictus, de John Carlin, no qual o filme se baseia. Não gosto de comparar filmes com livros, dizer que um é melhor que o outro. Mas, nesse caso, acho que a leitura do livro é condição para que o filme possa ser devidamente apreciado. O filme nos lança na África do Sul no significativo período que vai do primeiro dia do mandato de Nelson Mandela como primeiro presidente eleito pelo voto majoritário, em 11 de maio de 1994, até a final da Copa do Mundo de Rúgbi entre o Springboks (seleção da África do Sul) e o All Blacks (seleção da Nova Zelândia), em 24 junho de 1995. O espectador só poderá ter a exata noção da importância e do significado de cada cena exibida na tela se conhecer melhor os personagens envolvidos e a história da África do Sul desde dez anos antes do momento em que o filme inicia. É essa lacuna que o livro preenche. Para se ter uma ideia, apenas na página 164, de um total de 268, o leitor do livro entra no período mostrado no filme.

O livro, lançado em 2008 com o título Playing the enemy, foi escrito pelo jornalista britânico John Carlin, que morou em Johanesburgo de 1989 a 1995, onde foi chefe da sucursal sul-africana do jornal The Independent, de Londres. Nesse período, ele viveu intimamente a história que iria contar 12 anos depois. Entre 2000 e 2007, John Carlin voltou diversas vezes à África do Sul para trabalhos jornalísticos, como a realização de um documentário para a TV sobre Nelson Mandela. Além disso, entrevistou, especialmente para a composição do livro, os principais personagens envolvidos no drama sul-africano.

O resultado é um livro emocionante. Sem perder o foco da narrativa, que é a final da Copa do Mundo de Rúgbi, aprendemos muito sobre a África do Sul e Mandela. Acompanhamos toda a trajetória de Mandela, desde sua entrada no Congresso Nacional Africano aos 25 anos até a sua consagração como presidente de todos os sul-africanos no dia da grande final, aos 76 anos. No livro também conhecemos os principais personagens dos dois lados do apartheid que Mandela uniu para a construção da África do Sul livre, e suas impressões sobre os acontecimentos. Conhecemos os presidentes (P.W. Botha e De Klerk), o ministro da justiça (Kobie Coetze), o chefe da inteligência (Niël Bernard), o alto comandante militar do Estado do apartheid (Constand Viljoen), e também alguns carcereiros da prisão na ilha Robben. Conhecemos sobreviventes do apartheid como Justice Bekebeke, Walter Sisulu e o próprio Mandela, e mártires como Chris Hani e Anthon Lubowski. E, como não poderiam faltar, os dirigentes e jogadores do Springboks, convertidos de símbolos da opressão e do racismo em símbolos de um novo país.

Playing the enemy

O título do livro é Playing the enemy. Mas o que significa este título?

A palavra play tem o sentido de jogar, e o livro é sobre uma partida de rúgbi, mais especificamente sobre a final da Copa do Mundo de Rúgbi de 1995.

A palavra play também tem o sentido de brincar, em oposição a work, trabalhar. O rúgbi permitiu ao presidente brincar, torcer, em meio a um trabalho político estafante que consumia quase todo o seu tempo e a sua energia.

Play também significa peça de teatro, e to play, encenar. Como todo grande líder político, Mandela tinha uma habilidade natural para o teatro, aperfeiçoada pelos anos de prática no palco político.

Deste último significado, encenar, vem o principal sentido do título. Encenar, representar um personagem, é entrar na pele desse personagem, colocar-se na sua posição. Playing the enemy, portanto, significa principalmente “colocar-se no lugar do inimigo”. De modo semelhante, se pode dizer de um pai dedicado, pelo modo como ele age: “He is playing the father”.

A divisão da África do Sul

Na prisão Mandela percebeu que não poderia derrotar o inimigo; o único jeito de libertar o seu povo seria trazer o inimigo para o seu lado. O primeiro passo foi se colocar, sinceramente, no lugar do inimigo, sem nunca deixar de denunciar a perversidade do sistema e esquecer de seu objetivo: derrotar o apartheid, libertar seu povo e transformar a África do Sul em uma democracia. Com seus carcereiros ele pôde aprender a língua africâner, conhecer a história, os valores e os sentimentos de seus inimigos.

Uma das últimas ameaças que Mandela teve que trazer para o seu lado se chamava general Constand Viljoen. Ele era o líder que poderia, se os africâneres não recebessem uma parte de território soberano dentro da África do Sul, unir as milícias africâneres e parte das forças armadas em uma guerra contra a democracia e o governo do Congresso Nacional Africano. No primeiro encontro com o líder do Volksfront, Mandela deu a seguinte resposta a Constand Viljoen sobre as pretensões separatistas:

“Veja bem, general, sei que as forças militares que o senhor pode reunir são poderosas, bem armadas e bem treinadas e que são muito mais poderosas do que as minhas. Militarmente não podemos combatê-las; não podemos vencer. Se, no entanto, vocês declararem guerra, certamente não vencerão, pelo menos não no longo prazo. Porque, em primeiro lugar, a comunidade internacional está totalmente a nosso favor. E, em segundo lugar, somos muitos e vocês não podem matar todos nós. Então, que tipo de vida seu povo terá neste país? Meu povo vai pôr a boca no trombone, a pressão internacional sobre vocês será enorme e este país se tornará um inferno para todos nós. É isso que vocês querem? Não, general, não haverá vencedores se entrarmos em guerra.”
One team, one country

Mandela percorreu o caminho mais simples e eficaz, embora tão difícil (alguns o consideram impossível), para substituir a briga pela conversa, a guerra pela paz: colocar-se no lugar do inimigo, respeitar o inimigo. E foi isso que aconteceu em sua caminhada a partir de 1985 rumo à revolução negociada na África do Sul: ao colocar-se sinceramente no lugar do inimigo, ele conseguia convencer o inimigo a colocar-se no seu lugar. Ao respeitar os africâneres, conseguiu que os africâneres respeitassem os negros.

Simbolicamente, a final da Copa do Mundo de Rúgbi representou a coroação desse processo. Nelson Mandela entrou no Ellis Park com a camisa e o boné do Springboks para cumprimentar os heróis dos africâneres, e a torcida no estádio, uma amostra dos africâneres mais conservadores da África do Sul, cantou o Nkosi Sikelele (o hino da luta negra que foi incorporado ao hino sul-africano), a Shosholoza (canção popular dos negros que virou o hino do time), e gritou Nelson, Nelson. Depois, em todo o país, brancos e negros festejaram juntos a vitória do time de toda a África do Sul, dos rapazes de Mandela.

Israel, Palestina, Índia, Paquistão, Caxemira, Tibete...

No epílogo do livro o autor faz uma reflexão sobre os acontecimentos a partir da distância de 12 anos da final da Copa do Mundo de Rúgbi. Este é o último parágrafo do epílogo:
Se vai ser assim para sempre, não há como saber. O que perdurará é o exemplo de Mandela e aquele lampejo de utopia que seu povo teve do alto da montanha para a qual ele os guiou em 24 de junho de 1995. Quando perguntei a Tutu qual seria o exemplo duradouro daquele dia, ele respondeu: “É simples. Um amigo de Nova York deu a resposta quando me disse: ‘Sabe, o mais importante de tudo de bom que aconteceu é que pode acontecer de novo.’ Simples assim.”
Há a esperança de que possa acontecer de novo em outros países da África, da Ásia, do Oriente Médio e da Europa. Países onde há uma fenda dividindo povos de raça, tribo, religião, língua e sei lá mais o que diferente. Fenda que em parte foi aprofundada pela crença dogmática na autodeterminação dos povos, que fez com que diplomatas bem intencionados entendessem que criar um país para cada povo, riscando fronteiras nos mapas, seria uma boa solução para os conflitos. Fenda que os radicais dos dois lados, incapacitados de se colocar no lugar do outro, continuam cavando. 

Karl Popper e a autodeterminação dos povos

Em 1956, em conferência reproduzida no livro Conjecturas e Refutações, o filósofo Karl Popper criticou o conceito de autodeterminação dos povos (ou nações), nos seguintes termos:
... O absurdo do princípio da autodeterminação das nações deve aparecer claramente a quem dedicar um minuto a criticá-lo: ele equivale à exigência de que cada Estado seja um Estado nacional: que se limite à fronteira natural, coincidindo com a localização de um grupo étnico: assim, é o grupo étnico, a "nação", que determinará e protegerá os limites naturais do Estado.
Contudo, não existem Estados nacionais desse tipo.(...) Os Estados nacionais não existem, simplesmente porque as chamadas "nações" (ou "povos") com que sonham os nacionalistas também não existem. Praticamente não há grupos étnicos homogêneos estabelecidos em países com fronteiras naturais. Em toda a parte encontramos uma mistura de grupos étnicos e linguísticos (os dialetos correspondem muitas vezes a verdadeiras barreiras linguísticas).
A Tchecoslováquia de Masaryk foi fundada com base no princípio da autodeterminação. Logo depois de criada, porém, os eslovacos passaram a exigir, em nome desse mesmo princípio, sua libertação do domínio tcheco, e o país foi por fim destruído pela minoria alemã, também em nome do mesmo princípio. Situações semelhantes surgiram praticamente sempre que se aplicou o princípio da autodeterminação nacional à fixação das fronteiras de um novo Estado - na Irlanda, na Índia, em Israel, na Iugoslávia. Em todos os países há minorias étnicas. Não podemos adotar como um objetivo apropriado "liberá-las" a todas; nosso objetivo deve ser protegê-las. A opressão de grupos nacionais é um grande mal; mas a autodeterminação não representa um remédio aceitável. Além disso, temos na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá e na Suíça exemplos óbvios de Estados que em muitos aspectos violam o princípio da nacionalidade: em vez de ter suas fronteiras determinadas por um grupo estabelecido, cada um desses Estados conseguiu reunir dentro das suas fronteiras uma variedade de grupos étnicos. O problema, portanto, não parece insolúvel.
No entanto, a despeito de todos esses fatos tão evidentes, o princípio da autodeterminação nacional continua a ser aceito amplamente como parte da nossa crença moral. Raramente é contestado. Recentemente um cipriota apelou para esse princípio moral universalmente aceito. De acordo com o seu ponto de vista, os defensores do princípio da nacionalidade defendem os sagrados valores humanos e os direitos naturais do homem (ao que parece, mesmo quando cometem atos de terrorismo contra os compatriotas que não compartilham das mesmas ideias). O fato de que essa carta não mencionava a minoria étnica de Chipre; de que foi publicada pelo jornal; e de que sua doutrina moral não sofreu contestação em toda uma sequência de cartas sobre o assunto - tudo isso contribui para demonstrar minha primeira tese. Parece-me, de fato, que o número de pessoas mortas pela estupidez investida de objetivos morais é maior do que o das que são assassinadas por simples maldade.
A religião nacionalista é poderosa. Muitas pessoas se dispõem a morrer por ela, acreditando com fervor que é moralmente boa e factualmente verdadeira. No entanto, essas pessoas se equivocam tanto quanto seus companheiros comunistas. Poucas crenças criaram mais ódio, crueldade e sofrimento sem sentido do que a fé na santidade do princípio da nacionalidade. Contudo, ainda se acredita amplamente que esse princípio aliviará a opressão nacional. Admito que meu otimismo sofre um certo abalo quando percebo a quase unanimidade com que esse princípio é aceito, ainda hoje, sem hesitação ou dúvida - mesmo por aqueles cujos interesses políticos claramente se opõem a ele. Recuso-me porém a abandonar a esperança de que o absurdo e a crueldade desse alegado princípio moral serão algum dia reconhecidos por todos os homens que pensam.