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segunda-feira, 20 de julho de 2009

O estranho caso do bem e do mal


“O homem será um dia caracterizado pela sua constituição multiforme, incongruente, com suas facetas independentes umas das outras.”
(Dr. Jekyll, em “O Médico e o Monstro”)

“Nosso corpo é uma estrutura social de muitas almas”
(Nietzsche, em “Além do Bem e do Mal”)

Quando dou uma ordem para mim mesmo... Quem dá a ordem? E quem a cumpre, ou não? Parece que o século XIX na Europa foi um palco privilegiado não só para a percepção de que o homem reúne dentro de si muitas vontades, mas também para a crítica da moralização dessas vontades.

Em 1886 foi publicado “O Estranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde”, novela do escocês Robert Louis Stevenson, mais conhecida como “O Médico e o Monstro”. O livro conta a história do Dr. Jekyll, que, funcionando como cobaia de sua própria experiência, consegue se transformar no Sr. Hyde, ser repulsivo que concentra todos os desejos e sentimentos ocultos do Dr. Jekyll, como sensualidade, egoísmo e ódio. Ao ler o livro, temos a impressão de que o Sr. Hyde (hide - esconder) não é o mal que se encontra por natureza dentro de todo homem, mas uma deformação surgida no homem obrigado pela moralidade vitoriana a reprimir seus sentimentos mais humanos. Com a palavra, Dr. Jekyll:
“Na verdade o maior de meus defeitos era uma disposição por demais jovial e impaciente, que tem feito o prazer de muitos, mas que eu considerava inconciliável com o meu grande desejo de ser reconhecido como pessoa séria e respeitabilíssima. Por isso tratei de ocultar os meus divertimentos e comecei a olhar à minha volta, a fim de avaliar os progressos feitos e a minha posição na sociedade. Já era profunda a duplicidade do meu caráter. Muitos homens teriam confessado com orgulho certos erros. Eu, todavia, tendo em vista os altos propósitos aos quais visava, só podia envergonhar-me dessas irregularidades: escondia-as, com mórbida sensação de culpa e vergonha. Assim exigia a natureza de minhas aspirações, mais do que a própria degradação dos pecados; ia-se cavando em mim, mais do que na maioria dos mortais, esse profundo fosso que separa o mal do bem e divide e compõe a dualidade da nossa alma.”

Também em 1886 foi publicado o livro “Além do Bem e do Mal”, do alemão Friedrich Nietzsche. Um ponto recorrente no livro e também na obra do autor é uma crítica da tentativa de purificação do homem levada a cabo pela moralidade religiosa da época. Para ele, reprimir sentimentos fortes, em vez de buscar meios seguros de canalizá-los e escoá-los, era como represar águas revoltas, que têm assim ampliado seu potencial de destruição. Além disso, destruir as paixões e os desejos para evitar-lhes a estupidez e as conseqüências desagradáveis seria tão estúpido como se maravilhar com um dentista que arranca um dente para fazer cessar a dor. Nietzsche supõe que os afetos de ódio, inveja, cupidez e ânsia de domínio são essenciais à vida e, portanto, devem estar presentes na economia global da vida, se a vida é para ser realçada:
“Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado; é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a essas coisas ruins e aparentemente opostas.”

Essa ambição de aniquilar os desejos e paixões no interior do homem me parece típica de uma ideologia religiosa que se desenvolveu no interior das reformas (protestante e católica) do cristianismo. Na Carta da Felicidade, de Epicuro (cerca de 350 a.C.), bem é o que nos dá prazer e mal o que nos faz sofrer, e o homem é exortado à temperança e à ética na ação por meio da avaliação de qual comportamento lhe garante um prazer mais duradouro, e de qual comportamento, embora garantindo um prazer imediato, lhe traz mais dor:

“Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.”
Mas o antídoto mais eficaz contra o excesso de severidade é o bom humor. Com uma risada, Voltaire (1694-1778) abre as janelas do claustro religioso e, de uma só vez, critica a moralidade da época e propõe um julgamento mais prático do homem, na linha de David Hume (1711-1776), que defende que o valor de um homem depende de suas qualidades úteis e agradáveis a si mesmo e aos outros. Portanto, encerro meu passeio pelo bem e pelo mal com o último parágrafo do verbete Virtude, do Dicionário Filosófico, de Voltaire, que sintetiza o assunto desta crônica:
“Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico astucioso, que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverter a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade, e que apenas enganou os homens com sua virtude; neste caso exclamarei: ‘Meu Deus!, dai-nos muitos velhacos desta laia!’”
(publicado na Revista da Sexta de julho)

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