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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Literatura e Futebol

Em poucas partidas de futebol cabem toda literatura e toda sabedoria de vida. Aliás, muitos torcedores poderiam ter uma relação mais saudável com sua paixão se lessem os grandes livros de literatura e filosofia e aprendessem suas lições. Os temas da literatura e da filosofia de vida são os mesmos que transbordam do maltratado coração do torcedor de futebol:

1) A roda da fortuna. É a força do destino sempre em movimento levantando e derrubando torcedores, jogadores e times de futebol. Assim como a roda não vê quem ela carrega para cima e para baixo em suas engrenagens, nós também não podemos vê-la. Não sabemos, portanto, se estamos no ápice e vamos começar a descer, se estamos no nadir e vamos começar a subir, se vamos subir ou descer ainda mais, nem a velocidade do seu movimento. O melhor a fazer é manter o coração no presente: não deixar que medos e sonhos ofusquem a alegria de uma vitória, nem que as derrotas joguem suas sombras no futuro incerto.

2) O sofrimento e a alegria estão relacionados aos desejos frustrados ou realizados. E é a qualidade do time que diz ao torcedor o que pode ambicionar. Assim, o torcedor pode ficar eufórico em um ano porque seu time ficou entre os dez primeiros colocados e sofrer muito no ano seguinte com um vice-campeonato. Arthur nos ensina em seu livro Aforismas para a sabedoria de vida: “Um homem que nunca alimentou a aspiração a certos bens, não sente de modo algum a sua falta e está completamente satisfeito sem eles; enquanto um outro, que possui cem vezes mais do que o primeiro, sente-se infeliz, porque lhe falta uma só coisa à qual aspira. A esse respeito, cada um tem um horizonte próprio daquilo que pode alcançar, e suas pretensões vão até onde vai esse horizonte. Quando algum objeto se apresenta para ele nos limites desse horizonte, de modo que possa ter confiança em alcançá-lo, sente-se feliz; ao contrário, sente-se infeliz quando dificuldades advindas o privam de semelhante perspectiva. Aquilo que reside além desse horizonte não faz efeito sobre ele. Eis por que as grandes posses dos ricos não inquietam o pobre, e, por outro lado, o muito que já possui, se as intenções são malogradas, não consola o rico. A riqueza é como a água do mar: quanto mais a bebemos, mais sede sentimos.”

3) A frustração do desejo gera ódio e sentimento de ser vítima de injustiça. Para dar vazão a esse ódio o sofredor busca a causa da injustiça, o inimigo. Os juízes são os candidatos naturais, mas há quem ponha a culpa no técnico, em um jogador, na camisa, nos torcedores, no torcedor pé-frio, em si. Jó foi um dos mais radicais nessa busca por culpados, indo pedir satisfações a Deus; já seus companheiros diziam que tudo de ruim que aconteceu com ele era, de algum modo oculto, merecido. Há quem procure uma conspiração por trás de todas as derrotas, que una as frustrações numa só explicação, o que amplia a carga de ódio sobre esses supostos conspiradores.

4) Como os desejos variam de acordo com a situação de cada um, o ódio causado pela sua frustração colocava, e ainda coloca, o homem num derramamento de sangue sem fim. A solução para isso no comportamento externo seria conceder a um terceiro, à Justiça, dentro de certas normas, o poder/dever de julgar e aplicar a pena às faltas mais graves. Internamente, o único jeito é o cultivo da tolerância, do perdão, da união de todos no sofrimento humano. Nesse sentido, Jesus disse que não era juiz e pedia ao homem para amar seus inimigos; Buda pedia compaixão; e Aquiles, que movido pela cólera matou Heitor e arrastou seu corpo, se identificou com o pai de Heitor pela compaixão. Se identificaram pelo sofrimento: Aquiles pela perda de seu amigo, e Príamo pela de seu filho.

5) Apesar de certa disputa pelo troféu de maior sofredor, ainda é possível conseguir certa união entre os torcedores com base no sofrimento compartilhado, na compaixão. Pensar que todos sofrem com erros de juízes, de goleiros, perdem copas e campeonatos em uma infelicidade, nos faz sentir irmãos. O que parece impossível é ser um pouco solidário e tolerante na alegria. O instituto do futebol mais difundido entre os torcedores é colocar água no chope dos outros. Justamente quando seu time vence e você quer desfilar sua glória pelos quatro cantos da cidade, você vai ouvir: "o juiz roubou", "que sorte, hein?", "cavalo paraguaio, ainda vai cair", "também, com aquele patrocinador", "a vida não é só futebol"; o torcedor do outro time vai se pegar a qualquer coisa para colocar água no seu chope.

6) O parentesco entre a dor e o prazer. Sócrates disse que embora os dois nunca estejam juntos, parecem estar ligados, pois não se consegue pegar um, sem o outro vir grudado. Arthur enxergou que a felicidade é uma quimera e o sofrimento é real, porque atrás de cada desejo satisfeito tem pelo menos uns dez na fila para tomar o lugar daquele. Assim, junto com uma corrente do budismo, ele achava que seria sábio não procurar a felicidade, mas orientar a vida para evitar ao máximo o sofrimento. Já Frederico entendeu que a felicidade e o sofrimento são como irmãs gêmeas que têm sempre a mesma altura. Se você procura o mínimo sofrimento, terá que se contentar com uma felicidade atrofiada; se você busca grande felicidade estará sujeito também a mais sofrimento. Assim, ao contrário de Arthur, convocava o homem a, como um herói, dizer sim à vida, na busca de grande felicidade, mesmo sabendo que esse também é o caminho de grande sofrimento. No Brasil, temos o poeta botafoguense do sim heróico à vida, que em apenas uma música escreveu: "a vida só se dá pra quem se deu, pra quem chorou, pra quem amou, pra quem sofreu"; "Não há mal pior do que a descrença" e "Eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai porque tem medo de sofrer".

O futebol é um símbolo tão bom para a vida que poderia terminar esse pequeno ensaio com qualquer frase retirada dos grandes mestres da humanidade, mas ouço Sêneca sussurrando ao meu ouvido: “Torcedor, nenhuma promessa lhe foi feita para este campeonato - não, exagerei em minha sugestão -, nenhuma promessa lhe foi feita até mesmo para este jogo.” Mas, se não foi feita nenhuma promessa, também não foi rogada qualquer praga.
(texto de junho de 2007)

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