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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Odisseia, de Homero

A primeira obrigação de quem conta uma história é encantar o leitor ou o ouvinte. A literatura deve agarrar o leitor, arrancá-lo de seu mundo e transportá-lo para o mundo criado pelo livro. Entre os gregos a Odisseia tinha esse poder. A tradução em verso de Frederico Lourenço cumpre plenamente o objetivo, revelado no prefácio, de “devolver ao leitor de língua portuguesa o prazer do texto homérico”. O tradutor acrescenta:
Significa isto que, apesar de vertida do grego e com a máxima fidelidade ao original, não é uma tradução arcaizante nem acadêmica. É uma tradução para ser lida pelo gozo de ler.
Fiel a este propósito, resisti à tentação de salpicar o texto com notas, convicto de que o intuito principal que presidiu à composição da Odisseia foi de enlevar e comover os ouvintes por meio de uma história empolgante, maravilhosamente contada.
Mas a literatura em geral, e a Odisseia em particular, fazem muito mais com o leitor. A literatura tem o poder de salvar o homem. Salvamento que só será possível, aliás, se os dons encantatórios da narrativa forem liberados.

A Odisseia envolve o leitor em uma história que é um vasto painel do comportamento humano. A narrativa está dividida em três partes. Na primeira, encontramos Telêmaco e Penélope, filho e esposa, desamparados pela prolongada ausência de Ulisses, rei de Ítaca. Os arrogantes pretendentes de Penélope se apoderaram do palácio e planejam a morte de Telêmaco. Na segunda parte, a viagem de retorno de Ulisses a Ítaca, o herói ficará progressivamente mais vulnerável conforme vai perdendo seus homens e barcos, até chegar à condição de andarilho solitário. A terceira parte mostra Ulisses de volta à Ítaca e à sua casa, mas na aparência de um velho mendigo. Nas três partes, a ausência de normas estabelecidas libera os personagens para agir de forma arrogante e violenta com os outros, ou, ao contrário, e apesar das dificuldades pessoais, manter-se fiel aos valores de justiça e amor ao próximo.

O leitor pode observar desde personagens extremamente bondosos, como o porqueiro Eumeu e o velho Mentor, até extremamente maldosos, como Antínoo e Eurímaco. Mas também constatará que a maioria atua numa zona intermediária, de variada gradação, como o pretendente Anfínomo, o arauto Médon, o aedo Fêmio, o povo que assiste aos destinos da cidade, e a maioria das serviçais do palácio de Ulisses. Como exemplo dos extremos de comportamento, podemos copiar este trecho, que contrasta o comportamento arrogante do cabreiro Melanteu com o compassivo do vaqueiro Filécio diante do mendigo estrangeiro (na realidade Ulisses disfarçado):

Aproximou-se então Melanteu, o cabreiro de cabras,
trazendo as melhores cabras de todos os rebanhos para
o jantar dos pretendentes; com ele vinham dois pastores.
Atou as cabras debaixo do pórtico ecoante,
e dirigiu-se a Ulisses com palavras insultuosas:

“Estrangeiro, ainda aqui estás, a estorvar dentro de casa,
pedindo esmolas? Não queres sair daqui para fora?
Já estou a ver que não nos despediremos, tu e eu,
sem uns bons murros, pois é de forma desavergonhada
que pedes esmola. Além de que há outros jantares de Aqueus."

Assim falou; mas não lhe deu resposta o astucioso Ulisses.
Abanou a cabeça, com pensamentos terríveis no fundo do coração.

Depois destes chegou um terceiro, Filécio, condutor de homens:
trazia para os pretendentes uma vitela estéril e gordas cabras,
que barqueiros tinham transportado do continente (esses que
também transportam homens, se com eles forem ter).
Atou os animais debaixo do pórtico ecoante,
e aproximou-se do porqueiro com estas palavras:

“Quem é este estrangeiro, ó porqueiro, que chegou há pouco
a nossa casa? De que linhagem de homens declara ele ser
originário? Quem são os parentes? Qual é sua pátria?
Vítima do destino! Na verdade, de corpo parece um rei.
Mas os deuses dão a tristeza àqueles que muito vagueiam,
mesmo fiando para reis o fio da dolorosa desventura.”

Assim dizendo, aproximou-se de Ulisses e deu-lhe a mão.

Mas como a Odisseia pode salvar o homem? Há hoje uma tal descrença na literatura que a maioria julgará essa pergunta uma estultice. Mas eu insisto na minha fé na importância da literatura. Aqui estamos falando de civilidade, de educação. O leitor da Odisseia, justamente por não ser um pretendente, por não ser do povo de Ítaca, por não ser serviçal do palácio de Ulisses, consegue julgar com distanciamento os comportamentos dos personagens. A leitura permite ao leitor sair-se de si, observar o mundo sem as distorções provocadas pelas lentes de seus ódios, rancores, medos e desejos. É possível distinguir o bem e o mal do bom e do mau para si.

Ao fechar o livro e voltar para o nosso mundo, claro que não somos mais leitores. Ainda temos desejos, preferências, sentimentos como ódio, medo, inveja e rancor, e sabemos respeitar em nós estes sentimentos. Mas sabemos reconhecer esses sentimentos como nossos, e não mais tomaremos os julgamentos centrados neles como verdades absolutas, como justificativa para qualquer ato. Alguma prudência fará frente a nossa arrogância. Além disso crescerá dentro de nós um sentimento de admiração e submissão ao bem, que não seja simplesmente o meu bem. E ser educado e civilizado é justamente a capacidade de respeitar o próximo, acima de nossa inclinação mais imediata.

Muitas histórias do Livro das Mil e uma Noites são semelhantes às histórias da Odisseia. Tanto a Odisseia como o Livro das Mil e uma Noites trafegam entre o verossímil e o mágico com uma história de fundo verossímil trazendo as narrativas mágicas por meio de personagens narradores. Mas é a história de fundo do Livro das Mil e uma Noites que mais revela a fé no poder educativo da literatura. Sherazade se oferece como esposa do rei, não para morrer no dia seguinte como as outras esposas, mas para salvar a cidade e mesmo o próprio rei. Ela não espera convencer o rei com argumentos, jamais. Acredita nas histórias maravilhosas que sabe contar. Tal é sua fé no poder educativo de tais histórias que arrisca a sua própria vida. E são histórias encantatórias, envolventes, em que frequentemente encontramos, como na Odisseia, personagens sofredores cruzando tanto com pessoas injustas e perigosas, quanto com pessoas compassivas e solidárias.

4 comentários:

  1. Muito bom esse site. Muito bem feito e organizado.
    Vale muito apena perder uns minutinhos dessa nosa vida corrida para ler os artigos.
    Parabens!!

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  2. qual a historia contada na Odisseia , de Homero ?

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  3. Na Odisseia, Homero conta a história do retorno de Ulisses à Ítaca depois da guerra em Troia. A guerra tinha durado 10 anos, e durante mais 10 anos Ulisses viveu aventuras fantásticas até finalmente chegar de volta a Ítaca, onde era rei. 20 anos depois, seu palácio está invadido por arrogantes pretendentes à mão de sua esposa Penélope e ao trono de Ítaca. Com ajuda de seu filho, o astuto Ulisses vai ter que enfrentar uma batalha contra os pretendentes para retomar sua casa e o posto de rei.
    Chama atenção a estrutura narrativa usada por Homero. Em vez de contar a história na ordem cronológica, a partir do fim da guerra de Troia, Homero inicia o livro com Ulisses já próximo à Ítaca e o filho de Ulisses já adulto, ameaçado pelos pretendentes. Nesse momento, próximo ao clímax da história, Ulisses narra as aventuras de sua viagem para os convivas do rei Alcínoo, que o recebeu em seu palácio. Essa estrutura narrativa é muito usada no cinema, como por exemplo, no excelente Quem quer ser um milionário.

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  4. Porque a narrativa de Odisseia é considerada inversa e não linear?

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