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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O filho eterno, de Cristovão Tezza


Em O filho eterno, o escritor Cristovão Tezza ousou narrar com a sinceridade da literatura sua vida do ponto de vista do relacionamento de 25 anos com Felipe, o filho mongoloide. A palavra é forte, o pai em pouco tempo não conseguirá mais pronunciá-la, dirá que tem um filho com mongolismo (em 1980, ano do nascimento do filho, ninguém sabia o que era síndrome de Down). 

Mas o narrador não é o pai. O foco narrativo é em terceira pessoa: no princípio ele, depois também o pai, mas nunca será nomeado. Somente Felipe, o filho eterno, é chamado pelo nome próprio. A história do pai,  que conheceremos desde a infância por meio de flashbacks,  é uma busca confusa por uma essência: ator de teatro, relojoeiro, aventureiro, marinheiro, professor, marido, pai; seu traço mais constante é a obsessão de se tornar escritor, com livros publicados e lidos.

O foco narrativo em terceira pessoa é usado não apenas para narrar os acontecimentos, mas principalmente para revelar os pensamentos mais secretos do pai, a cada momento de sua difícil travessia. Permite ainda distanciamento emocional do narrador e uma riqueza narrativa impossível na primeira pessoa, alternando o presente histórico, que predomina, com os outros tempos narrativos.

A opção pela ficção é a opção por um relato verdadeiro, que seria impossível em uma autobiografia. Todos nós temos o direito (e até o dever) à ficção do eu. Afinal, o eu, na medida do possível, não é egoísta, não odeia, não perde a paciência, não bate, não quer fugir da esposa e do filho, não deseja a morte de ninguém.

O enredo, um pai tentando ser um escritor e um filho com Down, pode afastar muitos leitores. Besteira. Um dos méritos da literatura é nos aproximar de mundos desconhecidos e derrubar barreiras. Além disso, a história narrada é a ponte para o escritor falar sobre tudo. Sobre o tempo, sobre a família, sobre a normalidade e o diferente, e sobre coisas banais, como uma cidade e um nome.

Agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos - uma participação quase religiosa. Tudo parece que está virando religião. Mas você não quis, ele se vê dizendo. É que meu mundo é mental, talvez ele dissesse, se fosse mais velho. Um filho é a ideia de um filho; uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de ideias. (pg. 13)

Que nome dariam a ele? Se fosse mulher seria Alice, se fosse homem seria Felipe. Felipe. Um belo nome. Nítido como um cavaleiro recortado contra o horizonte. Um nome com contornos definidos. Uma dignidade simples, autoevidente, ele vai fantasiando: Felipe. Repete o nome várias vezes, quase em voz alta, para conferir se ele não se desgasta pelo uso, se não se esfarela no próprio som esvaziado pelo eco - Felipe, Felipe, Felipe, Felipe. Não: mantém-se intacto no horizonte, firme sobre o cavalo, a lança na mão direita. Felipe. (pg. 20)

Assim, em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa representação literária, apreendeu a intensidade da expressão "para sempre" - a ideia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, e o sentimento absoluto, mas óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomeçado, mas agora não; tudo pode ser refeito, mas isso não; tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez granítica e intransponível; o último limite, o da inocência, estava ultrapassado; a infância teimosamente retardada terminava aqui, (...) (pg. 26)

Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando no espaço estreito da fila do matadouro; recusava-se mesmo a olhar para a cama, onde todos se concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma maldição inesperada. (pg. 26)

Uma rede silenciosa de solidariedade - a solidariedade da tragédia, uma solidariedade taciturna - ergueu-se em torno dele em poucas horas, mas ele não queria ouvir ninguém. Continua cabeceando; o minuto seguinte de sua vida está diante dele, mas ele não quer abrir essa porta. (pg. 29)

Abre a boca horrorosa e chora muito; quando dorme, dorme em excesso; é preciso acordá-lo, alguém sugeriu. Quanto mais ele se mover, melhor - melhor pra quem?, o pai se pergunta. Move-se como qualquer outra criança. A língua parece um pouco mais comprida que a língua dos outros, ele pensa, mas os bebês são animais dúcteis, formam-se e deformam-se com facilidade, vão tomando contornos diferentes dia a dia. Se ele coloca o dedo na sua palma, o menino agarra-o com alguma força, o que, dizem, é sinal de boa saúde. Mas a cabeça, ele pensa, é grande demais, mesmo para um bebê, que são cabeçudos por natureza. Esse pescoço. E esse choro esganiçado - isso é normal? (pg. 34) [Trechos assim só são possíveis com o foco narrativo em terceira pessoa. O pai só poderia narrar dessa maneira se a relação dele com o filho não tivesse mudado nos 25 anos de relação que atravessam a história]


O problema é que as coisas - o filho agora, e toda a interminável e asfixiante soma dos pequenos fatos cotidianos que ele acumulou a vida inteira com a sensação de que criava e nutria uma personalidade própria - as coisas não são nada em si. O mundo não fala. Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que as coisas são. Esse é um poder inigualável, eu posso falsificar tudo e todos, sempre, um Midas Narciso, fazendo de tudo minha imagem, desejo e semelhança. Que é mais ou menos o que todos fazem, o tempo todo: falsificar. Essa algaravia monumental em toda parte, todos falando tudo a todo instante, esse horror coletivo ao silêncio. (pg. 36)


A normalidade. O que dizer aos outros, quando encontrar com eles? Sim, nasceu meu filho. Sim, está tudo bem. Quer dizer, ele é mongolóide. Não - essa palavra é pesada demais. E em 1980 ninguém sabia o que era "síndrome de Down". A maneira delicada de dizer é: Sim, um pequeno problema. Ele tem mongolismo. Mas isso exige uma rede de explicações subsequentes - e as pessoas nunca sabem o que dizer ou fazer diante daquela coisa esquisita. Ao "não me diga!" consternado ele dá um tapinha nas costas, um sorriso, e tranquiliza - mas está tudo bem, são crianças bem-humoradas, com um bom tratamento elas ficam praticamente normais. "Praticamente normais." O que ele quer resolver agora não é o problema da criança, mas o espaço que ela ocupa na sua vida. E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. (pg. 37)

A primeira criança de um casamento é uma aporrinhação monumental - o intruso exige espaço e atenção, chora demais, não tem horário nem limites, praticamente nenhuma linguagem comum, não controla nada em seu corpo, que vive a borbulhar por conta própria, depende de uma quantidade enorme de objetos (do berço à mamadeira, do funil de plástico às fraldas, milhares delas) até então desconhecidos pelos pais, drena as economias, o tempo, a paciência, a tolerância, sofre males inexplicáveis e intraduzíveis, instaura em torno de si o terror da fragilidade e da ignorância, e afasta, quase que aos pontapés, o pai da mãe. E é uma criança - como todo recém-nascido - feia. É difícil imaginar que daquela coisa mal-amassada surja como que por encanto algum ser humano, só pela força do tempo. (pg. 64)

Em 1981, o Rio de Janeiro continua lindo. Sente de novo o impacto da amplidão dos espaços que se abrem para o mar e a delicadeza dos recortes contra o céu azul, uma memória de seus tempos de quase marinheiro. (pg. 68)

Todas as pessoas - ele pensa olhando o mas no belo caminho de volta, a criança no colo - estão no limite, permanentemente no limite de si mesmas; e no entanto do outro lado está apenas o tempo. Um passo em frente é o tempo que ele leva. Fecha os olhos e se refugia no tempo: nada do que não foi poderia ter sido, e novamente se irrita. Não pode ser apenas isso. Mas é um bom álibi, uma espécie de repouso: relaxe; o tempo está escorrendo. O tempo não pode fazer nada contra você, ele pensa, além de envelhecê-lo, e a essa altura isso é muito bom. "Envelheçam", aconselhava Nelson Rodrigues aos jovens, e ele sorriu com a lembrança. (pg. 68)

Talvez seja isso - mas ele luta contra a ideia -, o fato de que o seu filho quebrou-lhe a espinha, tão cuidadosamente empinada. Por acaso. Tudo poderia ter sido de outra forma, mas o tempo é irredimível. O acaso e o não acaso que me trouxeram aqui, ele pensa, enquanto espera ser atendido. O acaso está no colo da mãe; nós, que já fomos acaso, estamos aqui por escolha. (pg. 70)

Ainda não é exatamente um filho. O pai não sabe disso, mas o que ele quer é que aquela criança trissômica conquiste o papel de filho. A natureza é só uma parte da equação. (pg. 82)

A ideia do tempo - não, a presença física do tempo mesmo - só é percebida integralmente quando o próprio tempo, de fato, começa a nos devorar. Antes disso (ele divagará anos depois), o tempo é a marcação do calendário e mais nada; durante um bom período da vida parece que há uma estabilidade, uma espécie tranquila de eternidade que escorre em tudo que pensamos e fazemos. (pg. 85)

A ideia de que há pessoas muito diferentes no mundo e que necessitam menos de ciência, e mais da nossa compreensão generosa - um ideário que agora, do início do século XXI, começa a se estabelecer mais ou menos solidamente, parece - era uma utopia. (pg. 102)

O fracasso é coisa nossa, os pássaros sem asas que guardamos em gaiolas metafísicas, para de algum modo reconhecermos nossa medida. (pg. 103)


Lembra de uma das fotografias que tirou, a criança de macacão azul engatinhando sobre a mesa - um belo enquadramento, equilíbrio de cores, a nitidez do rosto contra o fundo flou. Sim, parece uma criança normal.  Ele é que não parece normal, estendendo a foto a uma conhecida, ao mesmo tempo orgulhoso e inseguro do filho, à espera, ele próprio, de uma legitimação do seu sonho. "Sim, de fato, ele tem os olhos meio vazios" - como se ela não falasse ao pai, mas ao cientista que ele próprio tentava simular: jamais esqueceu a dor seca na alma ao ouvir aquela observação estúpida, porém tranquila, de alguém que também tem planos de não se enganar e não enganar na vida. Sim, os olhos. Tudo funciona mal na síndrome. O mundo que ele vê não é o nosso mundo. Ele não vê o horizonte; nem o abstrato, nem o concreto. O mundo tem dez metros de diâmetro e o tempo será sempre um presente absoluto, o pai descobrirá dez anos mais tarde. (pg. 112)


O pai está irritado, o que acontece cada vez com mais frequência nesse momento de sua vida. Ao anoitecer, vai levá-lo com a mãe a fonoaudióloga e assiste a uma sessão, praticamente de tortura - a criança não obedece, não se concentra, não ouve, e tem sempre pronta uma ação disparatada para mudar o rumo do que deve fazer. O pai está irritado porque não tem mais paciência de acompanhar aquela aporrinhação, que ele imagina vazia de sentido. As coisas que dizem que temos de fazer e então fazemos. (pg. 124)


O futebol, esse nada que preenche o mundo, o pai imagina, logo o futebol, uma instituição de importância quase superior à da ONU e que ao mesmo tempo congrega em sua cartolagem universal algumas das figuras mais corruptas e vorazes do mundo inteiro, um esporte que onde quer que se estabeleça é sinônimo de falcatrua, transformado num negócio gigantesco e tentacular, criador de mitos de areia, a mais poderosa máquina de rodar dinheiro e ocupar o tempo jamais inventada, a derrota final do dasein de Heidegger, o triunfo definitivo das massas, o maior circo de todos os tempos, vastas emoções sobre coisa alguma - o pai vai se irritando sempre que pensa, escravizado também ele àquela dança defeituosa que jamais completa mais de cinco lances seguidos sem um erro, um esporte que sequer tem arbitragem minimamente honesta até mesmo por impossibilidade do olhar dos juízes de dar conta do que acontece (em todos os jogos do mundo acontecem falhas grotescas), e no entanto urramos em torno dele, a alma virada do avesso - pois o futebol, essa irresistível coisa nenhuma, passou lentamente a ser para o Felipe uma referência de maturidade possível. (pg. 189) (Com tanta fluidez, e é apenas uma frase; só percebi isso quando fui copiar para o blog.)

Um comentário:

  1. Gostei muito desse livro, mas foi uma leitura super difícil. Me coloquei no lugar do pai-escritor e senti muito do que ele sentiu, até preconceito por ter preconceito. O livro, fininho, me tomou mais de três semanas de leitura...

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