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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Cegueiras Brancas e Visões na Penumbra




"Nossa vida passa a ser de uma claridade única, não descansamos à penumbra em momento algum." (Nilton Bonder)
No livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, as pessoas são atacadas por uma cegueira branca, que conduz o mundo ao caos. Mas será possível uma claridade tão intensa que impeça a visão? Existirá mesmo essa cegueira branca? Para mim ela é tão real que quase posso tocá-la, e me parece que, se atingisse a todos, transformaríamos nosso mundo num inferno.
A cegueira branca é uma metáfora para a cegueira da consciência que acredita que pode saber tudo, iluminar toda a realidade. Nossa consciência e nossa vontade são instrumentos com que conseguimos ver o mundo apenas parcialmente, em meio a sombras. Uma das maiores dificuldades para o ser humano, depois de satisfeitas suas necessidades animais básicas, é admitir que sua consciência não domina o mundo e sua vontade não controla sequer os acontecimentos internos.
E esse não é um problema que aceite ficar sem remédios, por mais destrutivos ou dolorosos que sejam. Alguns se voltam para a busca insaciável daqueles prazeres animais básicos, para além da necessidade. Outros preenchem as sombras com monstros imaginários e vivem com medo de tudo que é desconhecido. Há quem se console com controle excessivo sobre o futuro, sobre algo ou sobre alguém. Muitos negam qualquer ordem além da que suas consciências possam alcançar e qualquer legitimidade ao mundo que não satisfaça sua vontade, enquanto outros preferem negar suas consciências e suas vontades para se entregar à resignação total, uma morte antes da morte. A maioria oscila entre todos esses remédios e ainda outros, até que diante de uma crise resolva enfrentar o problema de frente.
A solução prática satisfatória pode ser expressa, e já o foi em milhares de formas. Uma forma sintética e alegre é atribuída a Maomé: "Confie em Deus, mas amarre seu camelo". Em seu livro A Arte de Se Salvar, o rabino Nilton Bonder apresenta vários aspectos desta solução paradoxal, que afirma tanto Deus quando o indivíduo, tanto a vontade do Outro quanto a do eu (veja no quadro trechos extraídos do capítulo Sabendo Perder para o Universo).
Não se trata de uma batalha entre religião e ciência, mas de uma batalha, que se trava também no coração do homem, entre o fanatismo originado pela obsessão por saber tudo (cegueira branca), e a tolerância originada pela aceitação dos limites de nossa compreensão. Assim, o cientista Isaac Newton pôde dizer que era apenas uma criança brincando de pegar conchinhas diante do imenso mar do mistério, enquanto sacerdotes pecam contra o mistério quando se dizem conhecedores da verdade divina. O que estão fazendo é querer ver tudo, confundindo suas consciências e suas vontades individuais com a própria consciência e vontade divinas.


As pessoas estão muito sozinhas. E quando o problema está relacionado com os limites da consciência e vontade individuais, tentar resolvê-lo sozinho pode ser desesperador. Por isso, acredito que as pessoas precisam ir aos templos se encontrar em comunidade para se relacionar com o mistério, dividir seus sofrimentos, suas limitações e suas perdas, mas também suas graças, seus tesouros e seus sucessos, na confiança de que são partes de uma mesma ordem que não conseguem enxergar com clareza. Precisamos ir aos templos para descansar à penumbra, afinal diante do mistério somos crianças em um quarto escuro, e devemos aprender com as crianças, que não têm vergonha de pedir companhia para enfrentar um quarto escuro. Precisamos ir aos templos para coletivamente até mesmo brigar com Deus, duvidar dele, mas sem negá-lo definitivamente, sob pena de criarmos um vazio que poderá ser ocupado por cegueiras que afirmam tudo ver e tudo iluminar.

Sabendo Perder para o Universo (pg. 76 a 81)
(Nilton Bonder)
Saber perder para o universo é acima de tudo conhecer e respeitar as regras que fundamentam a própria vida. "D'us dá e D'us tira; abençoado o nome de D'us para todo o sempre", diz o texto bíblico, apontando para uma relação entre divindade e criação que para muitos deixa apenas subsídios para resignação. No entanto, a resignação não é a forma mais apropriada de demonstrar que sabemos perder para o universo. Saber perder para o universo é um conceito diretamente associado com a capacidade de saber ganhar do universo. Trata, portanto, da determinação da medida exata em que devemos alimentar expectativas em relação à vida, em combinação com a medida exata com que devemos nos permitir um comportamento marcado pelo desapego.
(...)
Este comportamento representa entrar no jogo da vida para ganhar, amando a perda com a mesma intensidade que se ama a conquista, sabendo que uma é o avesso da outra e que é impossível ser grato por uma sem também o ser pela outra.
(...)
Devemos buscar como se tivéssemos perdido algo, como se tivéssemos o direito de reencontrá-lo; ao mesmo tempo devemos manter uma mentalidade de busca ao tesouro que, no caso de sucesso da busca, nos faz agradecer pelo tesouro, como se não tivéssemos direito ao mesmo. Este é o exercício diário que deveríamos realizar para aprender a perder para o universo. Aprender a perder para o universo é comportar-se corretamente quando no esforço por ganhar e quando se ganha do universo. A maneira pela qual recebemos algo do universo é fundamental, pois favorece ou não a capacidade de perder para o universo. Assim sendo, não deveríamos nunca deixar de reconhecer no conceito teórico de "D'us dá e D'us tira" a dimensão violenta que existe também em se experimentar o "receber" (no mínimo tão violenta quanto a percepção que temos daquilo que nos é tirado).
(...)
Saber perder para o universo é abrir mão de forma artística do controle nestas duas variáveis – busca e resultados. Na busca, abrir mão do controle é não se deixar levar pela lógica que reprime (e por fim suprime) a crença de que há algo para ser encontrado. No resultado, abrir mão do controle é permitir a si mesmo a surpresa de ter encontrado algo de cuja existência se tinha certeza na busca. Quando, no entanto, o resultado é a perda e nada encontramos, não se registra nenhum efeito de mágoa, uma vez que esta é uma reação de quem espera, e não de quem se surpreende no ato de encontrar.
Saber perder é, portanto, um comportamento "contraditório", onde esforço e expectativas não compartilham de uma mesma realidade. A conexão entre uma busca com fé e a gratidão por um resultado é obtida por uma atitude de vida muito especial.

(texto publicado na edição de abril da Revista da Sexta)

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