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domingo, 15 de novembro de 2009

Monotonamente Bela

Maragogi 2009


“A vida correria assim monotonamente bela, e não valeria a pena escrevê-la, a não ser um incidente, ocorrido naquela mesma ocasião."
(Machado de Assis, em O Machete)

Também eu aqui estou em dias de vida monotonamente bela, de férias no Resort Miramar, em Maragogi. O céu tão azul, o mar tão verde, coqueiros em todas as direções, e o álcool intensificando os tons.

O incidente que me fez escrever é o livro 50 Contos de Machado de Assis, Companhia das Letras, seleção, introdução e notas de John Gledson. Na seleção estão os grandes contos da maturidade do Machado, para reler, e algumas surpresas, como o primeiro conto da seleção, O Machete, imperdível.

O prefácio do organizador (Uma Breve Introdução aos Contos de Mahado de Assis) está perfeito. Portanto, fica a indicação e eu volto a minha praia monotonamente bela.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gregos os venham que!

Em português: Que venham os gregos!

Tradução, do latim traductione, significa conduzir, levar, transferir. O tradutor, portanto, é quem transfere as obras escritas em uma língua para os leitores de outra língua. Nós, leitores de língua portuguesa, contamos hoje com ótimos tradutores, especializados em diversas línguas e nos mais renomados autores. Mas nem sempre foi assim.


Há traduções de obras clássicas que em vez de trazer a obra para o bom português, levam-na para um idioma confuso, supostamente sofisticado, de difícil leitura, com as palavras em tal desordem que parecem estar brigando umas contra as outras. Essas traduções, embora em sua maioria antigas, continuam à venda, pois algumas editoras consideram apenas o fato de não ter de pagar direitos autorais por elas. O mais grave, a meu ver, é que muitos leitores distraídos atribuem à obra original os vícios da tradução, criando assim uma barreira entre ele e a obra, o que é uma pena. Um exemplo típico é a tradução dos nobres viscondes portugueses de Castilho e Azevedo para o Dom Quixote de La Mancha; tradução essa tão infeliz que, mesmo sem saber espanhol, é mais fácil para o leitor de língua portuguesa ler o Dom Quixote no idioma original.

Também muitas traduções da literatura clássica grega costumam afastar dos textos o leitor, que acaba identificando a arrogância e o hermetismo das traduções como características dos originais. Felizmente, o leitor de língua portuguesa que quiser ter o prazer de mergulhar na cultura grega por meio de seus clássicos, pode encontrar excelentes traduções. Abaixo, minhas recomendações, que incluem um livro sobre mitologia grega e um dicionário.

Ilíada e Odisseia, de Homero, nas traduções de Frederico Lourenço, Edições Cotovia.

As seguintes tragédias, todas editadas pela Jorge Zahar, com traduções de Mário da Gama Cury: Trilogia Tebana (Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona), de Sófocles; Oréstia (Agamêmnon, Coéforas e Eumênides), de Ésquilo; Medéia, Hipólito e As Troianas, de Eurípides.

Metamorfoses, de Ovídeo, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Edições Cotovia.

Diálogos III (Socráticos), de Platão, tradução de Edson Bini, Edipro.

Mitologia, de Edith Hamilton, Martins Editora.

Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, Bertrand Brasil.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Cegueiras Brancas e Visões na Penumbra




"Nossa vida passa a ser de uma claridade única, não descansamos à penumbra em momento algum." (Nilton Bonder)
No livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, as pessoas são atacadas por uma cegueira branca, que conduz o mundo ao caos. Mas será possível uma claridade tão intensa que impeça a visão? Existirá mesmo essa cegueira branca? Para mim ela é tão real que quase posso tocá-la, e me parece que, se atingisse a todos, transformaríamos nosso mundo num inferno.
A cegueira branca é uma metáfora para a cegueira da consciência que acredita que pode saber tudo, iluminar toda a realidade. Nossa consciência e nossa vontade são instrumentos com que conseguimos ver o mundo apenas parcialmente, em meio a sombras. Uma das maiores dificuldades para o ser humano, depois de satisfeitas suas necessidades animais básicas, é admitir que sua consciência não domina o mundo e sua vontade não controla sequer os acontecimentos internos.
E esse não é um problema que aceite ficar sem remédios, por mais destrutivos ou dolorosos que sejam. Alguns se voltam para a busca insaciável daqueles prazeres animais básicos, para além da necessidade. Outros preenchem as sombras com monstros imaginários e vivem com medo de tudo que é desconhecido. Há quem se console com controle excessivo sobre o futuro, sobre algo ou sobre alguém. Muitos negam qualquer ordem além da que suas consciências possam alcançar e qualquer legitimidade ao mundo que não satisfaça sua vontade, enquanto outros preferem negar suas consciências e suas vontades para se entregar à resignação total, uma morte antes da morte. A maioria oscila entre todos esses remédios e ainda outros, até que diante de uma crise resolva enfrentar o problema de frente.
A solução prática satisfatória pode ser expressa, e já o foi em milhares de formas. Uma forma sintética e alegre é atribuída a Maomé: "Confie em Deus, mas amarre seu camelo". Em seu livro A Arte de Se Salvar, o rabino Nilton Bonder apresenta vários aspectos desta solução paradoxal, que afirma tanto Deus quando o indivíduo, tanto a vontade do Outro quanto a do eu (veja no quadro trechos extraídos do capítulo Sabendo Perder para o Universo).
Não se trata de uma batalha entre religião e ciência, mas de uma batalha, que se trava também no coração do homem, entre o fanatismo originado pela obsessão por saber tudo (cegueira branca), e a tolerância originada pela aceitação dos limites de nossa compreensão. Assim, o cientista Isaac Newton pôde dizer que era apenas uma criança brincando de pegar conchinhas diante do imenso mar do mistério, enquanto sacerdotes pecam contra o mistério quando se dizem conhecedores da verdade divina. O que estão fazendo é querer ver tudo, confundindo suas consciências e suas vontades individuais com a própria consciência e vontade divinas.


As pessoas estão muito sozinhas. E quando o problema está relacionado com os limites da consciência e vontade individuais, tentar resolvê-lo sozinho pode ser desesperador. Por isso, acredito que as pessoas precisam ir aos templos se encontrar em comunidade para se relacionar com o mistério, dividir seus sofrimentos, suas limitações e suas perdas, mas também suas graças, seus tesouros e seus sucessos, na confiança de que são partes de uma mesma ordem que não conseguem enxergar com clareza. Precisamos ir aos templos para descansar à penumbra, afinal diante do mistério somos crianças em um quarto escuro, e devemos aprender com as crianças, que não têm vergonha de pedir companhia para enfrentar um quarto escuro. Precisamos ir aos templos para coletivamente até mesmo brigar com Deus, duvidar dele, mas sem negá-lo definitivamente, sob pena de criarmos um vazio que poderá ser ocupado por cegueiras que afirmam tudo ver e tudo iluminar.

Sabendo Perder para o Universo (pg. 76 a 81)
(Nilton Bonder)
Saber perder para o universo é acima de tudo conhecer e respeitar as regras que fundamentam a própria vida. "D'us dá e D'us tira; abençoado o nome de D'us para todo o sempre", diz o texto bíblico, apontando para uma relação entre divindade e criação que para muitos deixa apenas subsídios para resignação. No entanto, a resignação não é a forma mais apropriada de demonstrar que sabemos perder para o universo. Saber perder para o universo é um conceito diretamente associado com a capacidade de saber ganhar do universo. Trata, portanto, da determinação da medida exata em que devemos alimentar expectativas em relação à vida, em combinação com a medida exata com que devemos nos permitir um comportamento marcado pelo desapego.
(...)
Este comportamento representa entrar no jogo da vida para ganhar, amando a perda com a mesma intensidade que se ama a conquista, sabendo que uma é o avesso da outra e que é impossível ser grato por uma sem também o ser pela outra.
(...)
Devemos buscar como se tivéssemos perdido algo, como se tivéssemos o direito de reencontrá-lo; ao mesmo tempo devemos manter uma mentalidade de busca ao tesouro que, no caso de sucesso da busca, nos faz agradecer pelo tesouro, como se não tivéssemos direito ao mesmo. Este é o exercício diário que deveríamos realizar para aprender a perder para o universo. Aprender a perder para o universo é comportar-se corretamente quando no esforço por ganhar e quando se ganha do universo. A maneira pela qual recebemos algo do universo é fundamental, pois favorece ou não a capacidade de perder para o universo. Assim sendo, não deveríamos nunca deixar de reconhecer no conceito teórico de "D'us dá e D'us tira" a dimensão violenta que existe também em se experimentar o "receber" (no mínimo tão violenta quanto a percepção que temos daquilo que nos é tirado).
(...)
Saber perder para o universo é abrir mão de forma artística do controle nestas duas variáveis – busca e resultados. Na busca, abrir mão do controle é não se deixar levar pela lógica que reprime (e por fim suprime) a crença de que há algo para ser encontrado. No resultado, abrir mão do controle é permitir a si mesmo a surpresa de ter encontrado algo de cuja existência se tinha certeza na busca. Quando, no entanto, o resultado é a perda e nada encontramos, não se registra nenhum efeito de mágoa, uma vez que esta é uma reação de quem espera, e não de quem se surpreende no ato de encontrar.
Saber perder é, portanto, um comportamento "contraditório", onde esforço e expectativas não compartilham de uma mesma realidade. A conexão entre uma busca com fé e a gratidão por um resultado é obtida por uma atitude de vida muito especial.

(texto publicado na edição de abril da Revista da Sexta)

Colagem

“Que é a tolerância?
É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza.” (Voltaire, em Dicionário Filosófico)

O diabo são os outros!

O diabo são os outros?

O diabo sou eu! Nada do que é humano me é estranho. Dentro do meu coração está o ódio, a intolerância, a violência, o egoísmo; meu coração abriga todos os assassinatos, todos os crimes, todas as vilanias já cometidas pela humanidade. No entanto, nem eu, nem a maioria de meus pares humanos, transformamos em ato todas as maldades que nossos corações abrigam. Difícil dizer os motivos dessa aparente nobreza, talvez quase sempre uma mistura de motivos dignos e mesquinhos. Difícil julgar quem atravessou a linha, difícil julgar os monstros dos jornais; afinal, se procuro bem, são meus monstros.

Não julgueis! Quem nunca pecou que atire a primeira pedra! Quem sabe, realmente, o que fará amanhã quem cometeu um crime ontem? E o que fará amanhã esse que hoje se abaixa para apanhar a pedra? E o que fariam ambos em outras condições?

Não julgar não significa que não lutemos pelo que chamamos de Justiça, uma tentativa pragmática de proteger as pessoas, de conter o mal nas ruas com medidas eficientes de vigilância, julgamento e aplicação de penas.

Não julgar não significa perder a bússola, a orientação pelo bem, mas reconhecer que se precisamos de bússola, de orientação, é porque temos também dificuldade para seguir no rumo certo.

Não julgar significa não linchar, não apedrejar, não torturar, não abandonar, não excluir e dividir mais do que as paredes inevitáveis das prisões, das casas, dos medos e desejos.

Não julgar significa não cair na tentação que diz: “você solta seus demônios, então eu solto os meus!” E juntos transformamos o mundo num inferno.

Não julgar significa ter esperança. Esperar que além da luta entre o mal e o bem, que se trava no meu coração e nas ruas... além dessa agonia que consome o homem... mais fundo no coração de todo homem haja uma luz que pulsa na natureza e que pode ser revelada... uma luz que sinto em um breve momento de paz, deitado na grama à sombra de uma árvore.
(texto publicado na edição de maio da Revista da Sexta)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pela janela, a morte

Pare tudo. Bem perto da mesa onde trabalho uma senhora foi atropelada e morreu. Ouvi um grito e parei. Tive medo de ir à janela. Depois fui. Vi um ônibus azul; os passageiros saíam, olhavam para trás e se horrorizavam. A minha miopia e a copa da árvore não me deixavam ver o corpo estrangulado pela roda de trás do ônibus. Vi o movimento das pessoas, a chegada da polícia, dos bombeiros, e de uma espécie de grande papel laminado que serviu para enrolar o corpo e atenuar o horror da cena.


Diante do terrível fato de que uma senhora foi atropelada e morreu bem perto de mim, parece difícil acreditar que minha vida seguirá . E no entanto seguirá. Os jornalistas já transformam a morte em notícia, os agentes públicos registram a cena e retiram o corpo para outros trâmites. Logo sairá o ônibus azul e a rua será reaberta para o tráfego, esquecida daquela morte.

Livrai-me, ó Pai, de todo o mal. Livrai, acima de tudo, meus filhos de todo o mal. Mas, já que não tenho outra opção, seja feita vossa vontade.

Felizes os filhos, que não temem pelos pais, e mal temem por si.